Pesquisar este blog
Meus Vídeos...
quinta-feira, 22 de novembro de 2012
Escrever é Triste...
Escrever é triste.
Impede a conjugação de tantos outros verbos.
Os dedos sobre o teclado, as letras se reunindo
com maior ou menor velocidade, mas com igual
indiferença pelo que vão dizendo, enquanto lá fora a vida
estoura não só em bombas como também em dádivas de
toda natureza, inclusive a simples claridade da hora, vedada
a você, que está de olho na maquininha.
O mundo deixa de ser realidade quente para se reduzir a
marginália, puré de palavras, reflexos no espelho (infiel) do dicionário.
O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida.
Não apenas o sol, mas tudo que ele ilumina.
Tudo que se faz sem você, porque com você não é possível contar.
Você esperando que os outros vivam, para depois
comentá-los com a maior cara-de-pau ("com isenção de largo espectro",
como diria a bula, se seus escritos fossem produtos medicinais).
Selecionando os retalhos de vida dos outros, para objeto de sua
divagação descompromissada. Sereno. Superior. Divino.
Sim, como se fosse deus, rei proprietário do universo, que
escolhe para o seu jantar de notícias um terremoto, uma revolução,
um adultério grego — às vezes nem isso, porque no painel imenso
você escolhe só um besouro em campanha para verrumar a madeira.
Sim, senhor, que importância a sua: sentado aí, camisa aberta, sandálias,
ar condicionado, cafezinho, dando sua opinião sobre a angústia, a revolta,
o ridículo, a maluquice dos homens. Esquecido de que é um deles.
Ah, você participa com palavras? Sua escrita — por hipótese — transforma
a cara das coisas, há capítulos da História devidos à sua maneira de ajuntar
substantivos, adjetivos, verbos?
Mas foram os outros, crédulos, sugestionáveis, que fizeram o acontecimento.
Isso de escrever «O Capital» é uma coisa, derrubar as estruturas, na raça, é outra.
E nem sequer você escreveu «O Capital».
Não é todos os dias que se mete uma ideia na cabeça do próximo, por via gramatical.
E a regra situa no mesmo saco escrever e abster-se.
Vazio, antes e depois da operação.
Claro, você aprovou as valentes ações dos outros,
sem se dar ao incómodo de praticá-las.
Desaprovou as ações nefandas, e dispensou-se de corrigir-lhes os efeitos.
Assim é fácil manter a consciência limpa.
Eu queria ver sua consciência faiscando de limpeza é na ação,
que costuma sujar os dedos e mais alguma coisa.
Ao passo que, em sua protegida pessoa, eles apenas se tisnam
quando é hora de mudar a fita no carretel.
E então vem o tédio.
De Senhor dos Assuntos, passar a espectador enfastiado do espetáculo.
Tantos fatos simultâneos e entrechocantes, o absurdo promovido
a regra de jogo, excesso de vibração, dificuldade em abranger a
cena com o simples pai de olhos e uma fatigada atenção.
Tudo se repete na linha do imprevisto, pois ao imprevisto sucede
outro, num mecanismo de monotonia... explosiva.
Na hora ingrata de escrever, como optar entre as variedades de insólito?
E que dizer, que não seja invalidado pelo acontecimento
de logo mais, ou de agora mesmo?
Que sentir ou ruminar, se não nos concedem tempo para isto
entre dois acontecimentos que desabam como meteoritos sobre a mesa?
Nem sequer você pode lamentar-se pela incomodidade profissional.
Não é redator de boletim político, não é comentarista internacional,
colunista especializado, não precisa esgotar os temas, ver mais longe
do que o comum, manter-se afiado como a boa peixeira pernambucana.
Você é o marginal ameno, sem responsabilidade na instrução ou orientação
do público, não há razão para aborrecer-se com os fatos e a leve obrigação
de confeitá-los ou temperá-los à sua maneira.
Que é isso, rapaz.
Entretanto, aí está você, casmurro e indisposto para a tarefa de encher o
papel de sinaizinhos pretos.
Concluiu que não há assunto, quer dizer: que não há para você, porque
ao assunto deve corresponder certo número de sinaizinhos, e você não
sabe ir além disso, não corta de verdade a barriga da vida, não revolve
os intestinos da vida, fica em sua cadeira, assuntando, assuntando...
.
.
.
Carlos Drummind de Andrade, in 'O Poder Ultrajovem'...
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário