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quinta-feira, 28 de junho de 2012

Protopoema...



Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos

nós cegos, puxo um fio que me aparece solto.

Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os

dedos.

É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,

e tem a macieza quente do lodo vivo.

É um rio.

Corre-me nas mãos, agora molhadas.

Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de

repente não sei se as águas nascem de mim, ou para

mim fluem.

Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o

próprio corpo do rio.

Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os

barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que

vagarosamente deslizam sobre a película luminosa

dos olhos.

Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas

águas como os apelos imprecisos da memória.

Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.

Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e

firme pulsar do coração.

Agora o céu está mais perto e mudou de cor.

É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo

acorda o canto das aves.

E quando num largo espaço o barco se detém, o meu

corpo despido brilha debaixo do sol, entre o

esplendor maior que acende a superfície das águas.

Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas

da memória e o vulto subitamente anunciado do

futuro.

Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar

calada sobre a proa rigorosa do barco.

Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que

as aves digam nos ramos por que são altos os

choupos e rumorosas as suas folhas.

Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem,

sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas

verticais circundam.

Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra

viva.

Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se

juntarem às mãos.

Depois saberei tudo...
.
.
.
José Saramago...

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