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terça-feira, 26 de junho de 2012

O Rio...Ou relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife...


Da lagoa de Estaca a Apolinário

Sempre pensara em ir

caminho do mar.

Para os bichos e rios

nascer já é caminhar.

Eu não sei o que os rios

têm de homem do mar;

sei que se sente o mesmo

e exigente chamar.

Eu já nasci descendo

a serra que se diz do Jacarará,

entre caraibeiras

de que só sei por ouvir contar

(pois, também como gente,

não consigo me lembrar

dessas primeiras léguas

de meu caminhar).


Deste tudo que me lembro,

lembro-me bem de que baixava

entre terras de sede

que das margens me vigiavam.

Rio menino, eu temia

aquela grande sede de palha,

grande sede sem fundo

que águas meninas cobiçava.

Por isso é que ao descer

caminho de pedras eu buscava,

que não leito de areia

com suas bocas multiplicadas.

Leito de pedra abaixo

rio menino eu saltava.

Saltei até encontrar

as terras fêmeas da Mata.


Notícia do Alto Sertão


Por trás do que lembro,

ouvi de uma terra desertada,

vaziada, não vazia,

mais que seca, calcinada.

De onde tudo fugia,

onde só pedra é que ficava,

pedras e poucos homens

com raízes de pedra, ou de cabra.

Lá o céu perdia as nuvens,

derradeiras de suas aves;

as árvores, a sombra,

que nelas já não pousava.

Tudo o que não fugia,

gaviões, urubus, plantas bravas,

a terra devastada

ainda mais fundo devastava.


A estrada da Ribeira


Como aceitara ir

no meu destino de mar,

preferi essa estrada,

para lá chegar,

que dizem da ribeira

e à costa vai dar,

que deste mar de cinza

vai a um mar de mar;

preferi essa estrada

de muito dobrar,

estrada bem segura

que não tem errar

pois é a que toda a gente

costuma tomar

(na gente que regressa

sente-se cheiro de mar).


De Apolinário a Poço FundoPara o mar vou descendo

por essa estrada da ribeira.

A terra vou deixando

de minha infância primeira.

Vou deixando uma terra

reduzida à sua areia,

terra onde as coisas vivem

a natureza da pedra.

À mão direita os ermos

do Brejo da Madre de Deus,

Taquaritinga à esquerda,

onde o ermo é sempre o mesmo.

Brejo ou Taquaritinga,

mão direita ou mão esquerda,

vou entre coisas poucas

e secas além de sua pedra.

Deixando vou as terras

de minha primeira infância.

Deixando para trás

os nomes que vão mudando.

Terras que eu abandono

porque é de rio estar passando.

Vou com passo de rio,

que é de barco navegando.

Deixando para trás

as fazendas que vão ficando.

Vendo-as, enquanto vou,

parece que estão desfilando.

Vou andando lado a lado

de gente que vai retirando;

vou levando comigo

os rios que vou encontrando.


Os rios


Os rios que eu encontro

vão seguindo comigo.

Rios são de água pouca,

em que a água sempre está por um fio.

Cortados no verão

que faz secar todos os rios.

Rios todos com nome

e que abraço como a amigos.

Uns com nome de gente,

outros com nome de bicho,

uns com nome de santo,

muitos só com apelido.

Mas todos como a gente

que por aqui tenho visto:

a gente cuja vida

se interrompe quando os rios.


De Poço Fundo a Couro d'Anta


A gente não é muita

que vive por esta ribeira.

Vê-se alguma caieira

tocando fogo ainda mais na terra;

vê-se alguma fazenda

com suas casas desertas:

vêm para a beira da água

como bichos com sede.

As vilas não são muitas

e quase todas estão decadentes.

Constam de poucas casas

e de uma pequena igreja,

como, no itinerário,

já as descrevia Frei Caneca.

Nenhuma tem escola;

muito poucas possuem feira.


As vilas vão passando

com seus santos padroeiros.

Primeiro é Poço Fundo,

onde Santo Antônio tem capela.

Depois é Santa Cruz

onde o Senhor Bom Jesus se reza.

Toritama, antes Tôrres,

fez para a Conceição sua igreja.

A vila de Capado

chama-se pela sua nova capela.

Em Topada, a igreja

com um cemitério se completa.

No lugar Couro d'Anta,

a Conceição também se celebra.

Sempre um santo preside

à decadência de cada uma delas.


A estrada da Paraíba

Depois de Santa Cruz,

que agora é Capibaribe,

encontro uma outra estrada

que desce da Paraíba.

Saltando o Cariri

e a serra de Taquaritinga,

na estrada da ribeira

ela deságua como num rio.

Juntos, na da ribeira,

continuamos, a estrada e o rio,

agora com mais gente:

a que por aquela estrada descia.

Lado a lado com gente

viajamos em companhia.

Todos rumo do mar

e do Recife esse navio.


Na estrada da ribeira

até o mar ancho vou.

Lado a lado com gente,

no meu andar sem rumor.

Não é estrada curta,

mas é a estrada melhor,

porque na companhia

de gente é que sempre vou.

Sou viajante calado,

para ouvir histórias bom,

a quem podeis falar

sem que eu tente me interpor;

junto de quem podeis

pensar alto, falar só.

Sempre em qualquer viagem

o rio é o companheiro melhor.


Do riacho as Éguas ao ribeiro do Mel


Caruaru e Vertentes

na outra manhã abandonei.

Agora é Surubim,

que fica do lado esquerdo.

A seguir João Alfredo,

que também passa longe e não vejo.

Enquanto na direita

tudo são terras de Limoeiro.

Meu caminho divide,

de nome, as terras que desço.

Entretanto a paisagem,

com tantos nomes, é quase a mesma.

A mesma dor calada,

o mesmo soluço seco,

mesma morte de coisa

que não apodrece mas seca.


Coronéis padroeiros

vão desfilando com cada vila.

Passam Cheos, Malhadinha,

muito pobres e sem vida.

Depois é Salgadinho

com pobre águas curativas.

Depois é São Vicente,

muito morta e muito antiga.

Depois, Pedra Tapada,

com poucos votos e pouca vida.

Depois é Pirauíra,

é um só arruado seguido,

partido em muitos nomes

mas todo ele pobre e sem vida

(que só há esta resposta

à ladainha dos nomes dessas vilas).


Terras de Limoeiro


Vou na mesma paisagem

reduzida à sua pedra.

A vida veste ainda

sua mais dura pele.

Só que aqui há mais homens

para vencer tanta pedra,

para amassar com sangue

os ossos duros desta terra.

E se aqui há mais homens,

esses homens melhor conhecem

como obrigar o chão

com plantas que comem pedra.

Há aqui homens mais homens

que em sua luta contra a pedra

sabem como se armar

com as qualidades da pedra.


Dias depois, Limoeiro,

cortada a faca na ribanceira.

É a cidade melhor,

tem cada semana duas feiras.

Tem a rua maior,

tem também aquela cadeia

que Sebastião Galvão

chamou de segura e muito bela.

Tem melhores fazendas,

tem inúmeras bolandeiras

onde trabalha a gente

para quem se fez aquela cadeia.

Tem a igreja maior,

que também é a mais feia,

e a serra do Urubu

onde desses símbolos negros.


Porém bastante sangue

nunca existe guardado em veias

para amassar a terra

que seca até sua funda pedra.

Nunca bastantes rios

matarão tamanha sede,

ainda escancarada,

ainda sem fundo e de areia.

Pois, aqui, em Limoeiro,

com seu trem, sua ponte de ferro,

com seus algodoais,

com suas carrapateiras,

persiste a mesma sede,

ainda sem fundo, de palha ou areia,

bebendo tantos riachos

extraviados pelas capoeiras.


De Limoeiro a Ilhetas


Deixando vou agora

esta cidade de Limoeiro.

Passa Ribeiro Fundo

onde só vivem ferreiros,

gente dura que faz

essas mãos mais duras de ferro

com que se obriga a terra

a entregar seu fruto secreto.

Passa depois Boi-Sêco,

Feiticeiro, Gameleira, Ilhetas,

pequenos arruados

plantados em terra alheia,

onde vivem as mãos

que calçando as outras, de ferro,

vão arrancar da terra

os alheios frutos do alheio.


O trem de ferro


Agora vou deixando

o município de Limoeiro.

Lá dentro da cidade

havia encontrado o trem de ferro.

Faz a viagem do mar

mas não será meu companheiro,

apesar dos caminhos

que quase sempre vão paralelos.

Sobre seu leito liso,

com seu fôlego de ferro,

lá no mar do Arrecife

ele chegará muito primeiro.

Sou um rio de várzea,

não posso ir tão ligeiro.

Mesmo que o mar os chame,

os rios, como os bois, são ronceiros.


Outra vez ouço o trem

ao me aproximar de Carpina.

Vai passar chã, lá por cima.

Detém-se raramente,

pois que sempre está fugindo,

esquivando apressado

as coisas de seu caminho.

Diversa da dos trens

é a viagem que fazem os rios:

convivem com as coisas

entre as quais vão fluindo;

demoram nos remansos

para descansar e dormir;

convivem com a gente

sem se apressar em fugir.


Encontro com o canavial


No outro dia deixava

o Agreste, na Chã do Carpina.

Entrava por Paudalho,

terra já de cana e de usinas.

Via plantas de cana

com sua cabeleira, ou crina,

muita folha de cana

com sua lâmina fina,

muita soca de cana

com sua aparência franzina,

e canas com pendões

que são as canas maninhas.

Como terras de cana,

são muito mais brandas e femininas.

Foram terras de engenho,

agora são terras de usina.


Outros rios


Foram terras de engenho,

agora são terras de usina.

É o que contam os rios

que vou encontrando por aqui.

Rios bem diferentes

daqueles que já viajam comigo.

E estes também abraço

com abraço líquido e amigo.

Os primeiros porém

nenhuma palavra respondiam.

Debaixo do silêncio

eu não sei o que traziam.

Nenhum deles também

antecipar sequer parecia

o ancho mar do Recife

que os estava aguardando um dia.


Primeiro é o Petribu,

que trabalha para uma usina.

Trabalham para engenhos

o Apuá e o Cursaí.

O Cumbe e o Cajueiro

cresceram, como o Camilo,

entre cassacos do eito,

no mesmo duro serviço.

Depois é o Muçurepe,

que trabalha para outra usina.

Depois vem o Goitá,

dos lados da Chã da Alegria.

Então, o Tapacurá,

dos lados da Luz, freguesia

da gente do escrivão

que foi escrevendo o que eu dizia.


Conversa de rios


Só após algum caminho

é que alguns contam seu segredo.

Contam porque possuem

aquela pele tão espessa;

por que todos caminham

com aquele ar descalço de negros;

por que descem tão tristes

arrastando lama e silêncio.

A história é uma só

que os rios sabem dizer:

a história dos engenhos

com seus fogos a morrer.

Nelas existe sempre

uma usina e uma bangüê:

a usina com sua boca,

com suas várzeas o bangüê.


A usina possui sempre

uma moenda de nome inglês;

o engenho, só a terra

conhecida como massapê.

E o que não pode entrar

nas moendas de nomes inglês

a usina vai moendo

com muitos outros meios de moer.

A usina tem urtigas,

a usina tem morcegos,

que ela pode soltar

como amestrados exércitos

para ajudar o tempo

que vai roendo os engenhos,

como toda já roeu

a casa-grande do Poço do Aleixo.


Do Petribu ao Tapacurá


As coisas são muitas

que vou encontrando neste caminho.

Tudo planta de cana

nos dois lados do caminho;

e mais plantas de cana

nos dois lados dos caminhos

por onde os rios descem

que vou encontrando neste caminho;

e outras plantas de cana

há nas ribanceiras dos outros rios;

que estes encontraram

antes de se encontrarem comigo.

Tudo planta de cana

e assim até o infinito;

tudo planta de cana

para uma sô boca de usina.


As casas não são muitas

que por aqui tenho encontrado

( os povoados são raros

que a cana não tenha expulsado).

Poucas tem Rosarinho

e Destêrro, que está pegado.

Paudalho, que é maior,

está menos ameaçada,

Paudalho essa cidade

construída dentro de um valado,

com sua ponde de ferro

que eu atravesso de um salto.

Santa Rita é depois,

onde os trens fazem parada:

só com medo dos trens

é que o canavial não a assalta.


Descoberta da Usina


Até este dia, usinas

eu não havia encontrado.

Petribu, Muçurepe,

para trás tinham ficado,

porém o meu caminho

passa por ali muito apressado.

De usina eu conhecia

o que os rios tinham contado.

Assim, quando da Usina

eu me estava aproximando,

tomei caminho outro

do que vi o trem tomar:

tomei o da direita,

que a cambiteira vi tomar,

pois eu queria a Usina

mais de perto examinar.


Vira usinas comer

as terras que iam encontrando;

com grandes canaviais

todas as várzeas ocupando.

O canavial é a boca

com que primeiro vão devorando

matas e capoeiras,

pastos e cercados;

com que devoram a terra

onde um homem plantou seu roçado;

depois os poucos metros

onde ele plantou sua casa;

depois o pouco espaço

de que precisa um homem sentado;

depois os sete palmos

onde ele vai ser enterrado.


Muitos engenhos mortos

haviam passado no meu caminho.

De porteira fechada,

quase todos foram engolidos.

Muitos com suas serras,

todos eles com seus rios,

rios de nome igual

como crias de casa, ou filhos.

Antes foram engenhos,

poucos agora são usinas.

Antes foram engenhos,

agora são imensos partidos.

Antes foram engenhos

com suas caldeiras vivas;

agora são informes

partidos que nada identifica.


Encontro com a Usina


Mas nas Usina é que vi

aquela boca maior

que existe por detrás

das bocas que ela plantou;

que come o canavial

que contra as terras soltou;

que come o canavial

e tudo o que ele devorou;

que come o canavial

e as casas que ele assaltou;

que come o canavial

e as caldeiras que sufocou.

Só na Usina é que vi

aquela boca maior,

a boca que devora

bocas que devorar mandou.


Na vila da Usina


é que fui descobrir a gente

que as canas expulsaram

das ribanceiras e vazantes;

e que essa gente mesma

na boca da Usina são os dentes

que mastigam a cana

que a mastigou enquanto gente;

que mastigam a cana

que mastigou anteriormente

as moendas dos engenhos

que mastigavam antes outra gente;

que nessa gente mesma,

nos dentes fracos que ela arrenda,

as moendas estrangeiras

sua força melhor assentam.


Por esta grande usina

olhando com cuidado vou,

que esta foi a usina

que toda esta mata dominou.

Numa usina se aprende

como a carne mastiga o osso,

se aprende como mãos

amassam a pedra, o caroço;

numa usina se assiste

à vitória, de dor maior,

de brando sobre o duro,

do grão amassando a mó;

numa usina se assiste

à vitória maior e pior,

que é a da pedra curta

furada de suor.


Para trás vai ficando

a triste povoação daquela usina

onde vivem os dentes

com que a fábrica mastiga.

Dentes frágeis, de carne,

que não duram mais de um dia;

dentes são que se comem

ao mastigar para a Companhia;

de gente que, cada ano,

o tempo da safra é que vive,

que, na braça da vida,

tem marcado curto o limite.

Vi homens de bagaço

enquanto por ali discorria;

vi homens de bagaço

que morte úmida embebia.


E vi todas as mortes

em que esta gente vivia:

vi a morte por crime,

pingando a hora da vigia;

a morte por desastre,

com seus gumes tão precisos,

como um braço se corta,

cortar bem rente muita vida;

via morte por febre,

precedida de seu assovio,

consumir toda a carne

com um fogo que por dentro é frio.

Ali não é a morte

de planta que seca, ou de rio:

é morte que apodrece,

ali natural, que visto.



Da Usina a São Lourenço da Mata


Agora vou deixando

a povoação daquela usina.

Outra vez vou baixando

entre infindáveis partidos;

entre os mares de verde

que sabe pintar Cícero Dias,

pensando noutro engenho

devorado por outra usina;

entre colinas mansas

de uma terra sempre em cio,

que o vento, com carinho,

penteia, como se sua filha.

Que nem ondas de mar,

multiplicadas, elas se estendiam;

como ondas do mar de mar

que vou conhecer um dia.


À tarde deixo os mares

daquela usina de usinas;

vou entrando nos mares

de algumas outras usinas.

Sei que antes esses mares

inúmeros se dividiam

até que um mar mais forte

os mais fracos engolia

(hoje só grandes mares

a Mata inteira dominam).

Mas o mar obedece

a um destino sem divisa,

e o grande mar de cana,

como o verdadeiro, algum dia,

será uma só água

em toda esta comum cercania.


De São Lourenço à Ponte de Prata


Vou pensando no mar

que daqui ainda estou vendo;

em toda aquela gente

numa terra tão viva morrendo.

Através deste mar

vou chegando a São Lourenço,

que de longe é como ilha

no horizonte de cana aparecendo;

através deste mar,

como um barco na corrente,

mesmo sendo eu o rio,

que vou navegando parece.

Navegando este mar,

até o Recife irei,

que as ondas deste mar

somente lá se detêm.


Ao entrar no Recife,

não pensem que entro só.

Entra comigo a gente

que comigo baixou

por essa velha estrada

que vem do interior;

entram comigo rios

a quem o mar chamou,

entra comigo a gente

que com o mar sonhou,

e também retirantes

em que só o suor não secou;

e entra essa gente triste,

a mais triste que já baixou,

a gente que a usina,

depois de mastigar, largou.


Entra a gente que a usina

depois de mastigar largou;

entra aquele usineiro

que outro maior devorou;

entra esse bangüezeiro

reduzido a fornecedor;

entra detrás um destes,

que agora é um simples morador;

detrás, o morador

que nova safra já não fundou;

entra, como cassaco,

esse antigo morador;

entra enfim o cassaco

que por todas aquelas bocas passou.

Detrás de cada boca,

ele vê que há uma boca maior.


Da Ponte de Prata a Caxangá


A gente das usinas

foi mais um afluente a engrossar

aquele rio de gente

que vem de além do Jacarará.

Pelo mesmo caminho

que venho seguindo desde lá,

vamos juntos, dois rios,

cada um para seu mar.

O trem outro caminho

tomou na Ponte de Prata;

foi por Tijipió

e pelos mangues de Afogados.

Sempre com retirantes,

vou pela Várzea e por Caxangá

onde as últimas ondas

de cana se vêm espraiar.


Entra-se no Recife

pelo engenho São Francisco.

Já em terras da Várzea,

está São João, uma antiga usina.

Depois se atinge a Várzea,

a vila pròpriamente dita,

com suas árvores velhas

que dão uma sombra também antiga.

A seguir, Caxangá,

também velha e recolhida,

onde começa a estrada

dita Nova, ou de Iputinga,

que quase reta à cidade,

que é o mar a que se destina,

leva a gente que veio

baixando em minha companhia.


Vou deixando à direita

aquela planície aterrada

que desde os pés de Olinda

até os montes Guararapes,

e que de Caxangá

até o mar oceano,

para formar o Recife

os rios vão sempre atulhando.

Com água densa de terra

onde muitas usinas urinaram,

água densa de terra

e de muitas ilhas engravidada.

Com substância de vida

é que os rios a vão aterrando,

com esse lixos de vida

que os rios viemos carreando.


De Caxangá a Apipucos


Até aqui as últimas

ondas de cana não chegam.

Agora o vento sopra

em folhas de um outro verde.

Folhas muito mais finas

as brisas daqui penteiam.

São cabelos de moças

ou dos bacharéis em direito

que devem habitar

naqueles sobrados tão pitorescos

(pois os cabelos da gente

que apodrece na lama negra

geram folhas de mangue,

que não folhas duras e grosseiras).


De Apipucos à Madalena


Agora vou entrando

no Recife pitoresco,

sentimental, histórico,

de Apipucos e do Monteiro:

do Poço da Panela,

da Casa Forte e do Caldeireiro,

onde há poças de tempo

estagnadas sob as mangueiras;

de Sant'Ana de Dentro,

das muitas olarias,

rasas, se agachando do vento.

E mais sentimental,

histórico e pitoresco

vai ficando o caminho

a caminho da Madalena.


Um velho cais roído

e uma fila de oitizeiros

há na curva mais lenta

do caminho pela Jaqueira,

onde (não mais está)

um menino bastante guenzo

de tarde olhava o rio

como se filme de cinema;

via-me, rio, passar

com meu variado cortejo

de coisas vivas, mortas,

coisas de lixo e de despejo;

vi o mesmo boi morto

que Manuel viu numa cheia,

viu ilhas navegando,

arrancadas das ribanceiras.


Vi muitos arrabaldes

ao atravessar o Recife:

alguns na beira da água,

outros em deitadas colinas;

muitos no alto de cais

com casarões de escadas para o rio;

todos sempre ostentando

sua ulcerada alvenaria;

todos bem orgulhosos,

não digo de sua poesia,

sim, da história doméstica

que estuda para descobrir, nestes dias,

como se palitava

os dentes nesta freguesia.


As primeiras ilhas


Rasas na altura da água

começam a chegar as ilhas.

Muitas a maré cobre

e horas mais tarde ressuscita

(sempre depois que afloram

outra vez à luz do dia

voltam com chão mais duro

do que o que dantes havia).

Rasas na altura da água

vê-se brotar outras ilhas:

ilhas ainda sem nome,

ilhas ainda não de todo paridas.

Ilha Joana Bezerra,

do Leite, do Retiro, do Maruim:

o touro da maré

a estas já não precisa cobrir.


O outro Recife


Casas de lama negra

há plantadas por essas ilhas

(na enchente da maré

elas navegam como ilhas);

casas de lama negra

daquela cidade anfíbia

que existe por debaixo

do Recife contado em Guias.

Nela deságua a gente

(como no mar deságuam rios)

que de longe desceu

em minha companhia;

nela deságua a gente

de existência imprecisa,

no seu chão de lama

entre água e terra indecisa.


Dos Coelhos ao cais de Santa Rita


Mas deixo essa cidade:

dela mais tarde contarei.

Vou naquele caminho

que pelo hospital dos Coelhos,

por cais de que as vazantes

exibem gengivas negras,

leva àquele Recife

de fundação holandesa.

Nele passam as pontes

de robustez portuguesa,

anúncios luminosos

com muitas palavras inglesas;

passa ainda a cadeia,

passa o Palácio do Governo,

ambos robustos, sólidos,

plantados no chão mais seco.


Rio lento de várzea,

vou agora ainda mais lento,

que agora minhas águas

de tanta lama me pesam.

Vou agora tão lento,

porque é pesado o que carrego:

vou carregado de ilhas

recolhidas enquanto desço;

de ilhas de terra preta,

imagem do homem que encontrei

no meu comprido trajeto

(também a dor desse homem

me impõe essa passada doença,

arrastada, de lama,

e assim cuidadosa e atenta).


Vão desfilando cais

com seus sobrados ossudos.

Passam muitos sobrados

com seus telhados agudos.

Passam, muito mais baixos,

os armazéns de açúcar do Brum.

Passam muitas barcaças

para Itapissuma, Igaraçu.

No cais de Santa Rita,

enquanto vou norte-sul,

surge o mar, afinal,

como enorme montanha azul.

No cais, Joaquim Cardozo

morou e aprendeu a luz

das costas do Nordeste,

mineral de tanto azul.


As duas cidades


Mas antes de ir ao mar,

onde minha fala se perde,

vou contar da cidade

habitada por aquela gente

que veio meu caminho

e de quem fui o confidente.

Lá pelo Beberibe

aquela cidade também se estende

pois sempre junto aos rios

prefere se fixar aquela gente;

sempre perto dos rios,

companheiros de antigamente,

como se não pudessem

por um minuto somente

dispensar a presença

de seus conhecidos de sempre.


Conheço todos eles,

do Agreste e da Caatinga;

gente também da Mata

vomitada pelas usinas;

gente também daqui

que trabalha nestas usinas,

que aqui não moem cana,

moem coisas muito mais finas.

Muitas eu vi passar:

fábricas, como aqui se apelidam;

têm bueiro como usina,

são iguais também por famintas.

Só que as enormes bocas

que existem aqui nestas usinas

encontram muitas pedras

dentro de sua farinha.


A gente da cidade

que há no avesso do Recife

tem em mim um amigo,

seu companheiro mais íntimo.

Vivo como esta gente,

entro-lhes pela cozinha;

como bicho de casa

penetro nas camarinhas.

As vilas que passei

sempre abracei como amigo;

desta vila de lama

é que sou mais do que amigo:

sou o amante, que abraça

com corpo mais confundido;

sou o amante, com ela

leito de lama divido.


Tudo o que encontrei

na minha longa descida,

montanhas, povoados,

caieiras, viveiros, olarias,

mesmo esses pés de cana

que tão iguais me pareciam,

tudo levava um nome

com que poder ser conhecido.

A não ser esta gente

que pelos mangues habita:

eles são gente apenas

sem nenhum nome que os distinga;

que os distinga na morte

que aqui é anônima e seguida.

São como ondas de mar,

uma só onda, e sucessiva.


A não ser esta cidade

que vim encontrar sob o Recife:

sua metade podre

que com lama podre se edifica.

É cidade sem nome

sob a capital tão conhecida.

Se é também capital,

será uma capital mendiga.

É cidade sem ruas

e sem casas que se diga.

De outra qualquer cidade

possui apenas polícia.

Desta capital podre

só as estatísticas dão notícia,

ao medir sua morte,

pois não há o que medir em sua vida.


Conheço toda a gente

que deságua nestes alagados.

Não estão no nível de cais,

vivem no nível de lama e do pântano.

Gente de olho perdido

olhando-me sempre passar

como se eu fosse trem

ou carro de viajar.

É gente que assim me olha

desde o sertão do Jacarará;

gente que sempre me olha

como se, de tanto me olhar,

eu pudesse o milagre

de, num dia ainda por chegar,

levar todos comigo,

retirantes para o mar.


Os dois mares


A um rio sempre espera

um mais vasto e ancho mar.

Para a agente que desce

é que nem sempre existe esse mar,

pois eles não encontram

na cidade que imaginavam mar

senão outro deserto

de pântanos perto do mar.

Por entre esta cidade

ainda mais lenta é minha pisada;

retardo enquanto posso

os últimos dias da jornada.

Não há talhas que ver,

muito menos o que tombar:

há apenas esta gente

e minha simpatia calada.


Oferenda


Já deixando o Recife

entro pelos caminhos comuns do mar:

entre barcos de longe,

sábios de muito viajar;

junto desta barcaça

que vai no rumo de Itamaracá;

lado a lado com rios

que chegam do Pina com Jiquiá.

Ao partir companhia

desta gente dos alagados

que lhe posso deixar,

que conselho, que recado?

Somente a relação

de nosso comum retirar;

só esta relação

tecida em grosso tear...
.
.
.
João Cabral de Melo Neto...

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