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terça-feira, 30 de outubro de 2012

Por você por mim...



A noite, a noite, que se passa? diz

que se passa, esta serpente vasta em convulsão, esta

pantera lilás, de carne

lilás, a noite, esta usina

no ventre da floresta, no vale,

sob os lençóis de lama e acetileno, a aurora,

o relógio da aurora, batendo, batendo,

quebrado entre cabelos, entre músculos mortos, na podridão

a boca destroçada já não diz a esperança,

batendo

Ah, como é difícil amanhecer em Thua Thien.

Mas amanhece.


Que se passa em Huê? em Da Nang? No Delta

do Mekong? Te pergunto,

nesta manhã de abril no Rio de Janeiro,

te pergunto,

que se passa no Vietnam?


As águas explodem como granadas, os arrozais

se queimam em fósforo e sangue

entre fuzis

as crianças

fogem dos jardins onde açucenas pulsam

como bombas-relógio, os jasmineiros

soltam gases, a máquina

da primavera

danificada

não consegue sorrir.


Há mortos demais no regaço de Mac Hoa.

Há mortos demais

nos campos de arroz, sob os pinheiros,

às margens dos caminhos que conduzem a Camau.


O Vietnam agora é uma vasta oficina da morte, nos campos

da morte, o motor

da vida gira ao contrário, não

para sustentar a cor da íris,

a tessitura da carne, gira

ao contrário, a desfazer a vida, o maravilhoso aparelho

do corpo, gira

ao contrário das constelações, a vida

ao contrário, dentro

de blusas, de calças, dentro

de rudes sapatos feitos de pano e palha, gira

ao contrário a vida feita de morte.

Surdo

sistema de álcool, gira

gira, apaga rostos, mãos,

esta mão jovem

que saiba ajudar o arroz, tecer a palha. Há mortos

demais, há mortes

demais, coisas da infância, a hortelã, os sustos

do amor, aquela tarde aquela tarde clara, amada,

aquela tarde clara tudo

tudo se dissolve nas águas marrons

e entre nenúfares e limos

a correnteza arrasta para o mar o mar o mar azul


É dia feito em Botafogo.

Homens de pasta, paletó, camisa limpa,

dirigem-se para o trabalho.

Mulheres voltam da feira, as bolsas cheias de legumes.

Crianças passam para o colégio.

As nuvens nuvem

e as águas batem naturalmente em toda a orla marítima.

Nenhuma ameaça pesa sobre a cidade.

As pessoas

marcaram encontros, irão ao cinema, à buate, se amarão

nas praias

na cama

nos carros. As pessoas

acertam negócios, marcam viagens, férias.

Nenhuma ameaça

pesa sobre a cidade.

Os barulhos apitos sem alarma. O avião no céu

vai para São Paulo.

O avião no céu não é um Thunderchief da USAF

que chega trazendo a morte

como em Hanói.

Não é um Thunderchief da USAF que chega

seguido de outros

e outros

da USAF

carregados de bombas e foguetes

como em Hanói

que chega lançando bombas e foguetes

como em Hanói

como em Haiphong

incendiando o porto

destruindo as centrais elétricas

as estradas de ferro

como em Hanói

como em Hoa Bac

queimando crianças com napalm

como em Hanói

como em Chien Tien

como em Don Hoi

como em Tai Minh

como em Vihn Than

como em Hanói

Como pode uma cidade, como pode

uma cidade

resistir


Os americanos estão agora investindo muito no Vietnam

O Vietnam agora nada em ouro

e fogo

Bases aéreas

Arsenais

Depósitos de combustíveis

Laboratórios na rocha

Radar

Foguetes

A ciência eletrônica invade a selva

gases novos, armas novas

O lazy-dog

lança em todas as direções mil flechas de aço

o bull-pup

procura o alvo com seus 200 quilos de explosivos

o olho-de-serpente

pousa sobre uma casa e espera a hora certa de matar

O Vietnam agora está cheio de arame farpado

de homens louros

farpados

armados

vigiados

cercados

assustados

está cheio de jovens homens louros

e cadáveres jovens

de homens louros

enganados


Próximo à base de Da Nang

que tudo escuta e tudo vê,

próximo à base de Da Nang, esgueira-se

entre árvores um homem,

próximo à base cheia de soldados,

metralhadoras, bombas,

aviões, cheia

de ouvidos e de olhos

eletrônicos, um homem, chamado Tram,

entre as folhas e os troncos que cheiram a noite,

cauteloso se move

entre as folhas da noite, Tram Van Dam,

cauteloso se move

entre as flores da morte

Tram Van Dam

quinze anos se move

entre as águas da noite

dentro da lama

onde bate a aurora

Tram Van Dam

onde bate a aurora

Tram Van Dam

com a sua granada

entre cercas de arame

entre as minas no chão

Tram Van Dam

com seu coração

Tram Van Dam

onde bate a aurora

por você por mim

sob o fogo inimigo

com o grampo no dente

com o braço no ar

por você por mim

Tram Van Dam

onde bate a aurora

por você por mim

no Vietnam...
.
.
.
Ferreira Gullar...

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