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domingo, 21 de outubro de 2012

Nosso tempo...


Esse é tempo de partido,

tempo de homens partidos.


Em vão percorremos volumes,

viajamos e nos colorimos.

A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.

Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.

As leis não bastam. Os lírios não nascem

da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se

na pedra.


Visito os fatos, não te encontro.

Onde te ocultas, precária síntese,

penhor de meu sono, luz

dormindo acesa na varanda?

Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo

sobe ao ombro para contar-me

a cidade dos homens completos.


Calo-me, espero, decifro.

As coisas talvez melhorem.

São tão fortes as coisas!


Mas eu não sou as coisas e me revolto.

Tenho palavras em mim buscando canal,

são roucas e duras,

irritadas, enérgicas,

comprimidas há tanto tempo,

perderam o sentido, apenas querem explodir.


II


Esse é tempo de divisas,

tempo de gente cortada.

De mãos viajando sem braços,

obscenos gestos avulsos.


Mudou-se a rua da infância.

E o vestido vermelho

vermelho

cobre a nudez do amor,

ao relento, no vale.


Símbolos obscuros se multiplicam.

Guerra, verdade, flores?

Dos laboratórios platônicos mobilizados

vem um sopro que cresta as faces

e dissipa, na praia, as palavras.


A escuridão estende-se mas não elimina

o sucedâneo da estrela nas mãos.

Certas partes de nós como brilham! São unhas,

anéis, pérolas, cigarros, lanternas,

são partes mais íntimas,

e pulsação, o ofego,

e o ar da noite é o estritamente necessário

para continuar, e continuamos.


III


E continuamos. É tempo de muletas.

Tempo de mortos faladores

e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,

mas ainda é tempo de viver e contar.

Certas histórias não se perderam.

Conheço bem esta casa,

pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,

a sala grande conduz a quartos terríveis,

como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,

conduz à copa de frutas ácidas,

ao claro jardim central, à água

que goteja e segreda

o incesto, a bênção, a partida,

conduz às celas fechadas, que contêm:

papéis?

crimes?

moedas?


Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiados urbano,

ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,

moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos,

portas rangentes, solidão e asco,

pessoas e coisas enigmáticas, contai;

capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;

velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;

ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da

costureira, luto no braço, pombas, cães errantes,

animais caçados, contai.

Tudo tão difícil depois que vos calastes...

E muitos de vós nunca se abriram.


IV


É tempo de meio silêncio,

de boca gelada e murmúrio,

palavra indireta, aviso

na esquina. Tempo de cinco sentidos

num só. O espião janta conosco.


É tempo de cortinas pardas,

de céu neutro, política

na maçã, no santo, no gozo,

amor e desamor, cólera

branda, gim com água tônica,

olhos pintados,

dentes de vidro,

grotesca língua torcida.

A isso chamamos: balanço.


No beco,

apenas um muro,

sobre ele a polícia.

No céu da propaganda

aves anunciam

a glória.

No quarto,

irrisão e três colarinhos sujos.


V


Escuta a hora formidável do almoço

na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.

As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas.

Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!

Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,

olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.

Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,

mais tarde será o de amor.

Lentamente os escritórios se recuperam, e os

negócios, forma indecisa, evoluem.


O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.

Multidões que o cruzam não vêem. É sem cor e sem cheiro.

Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,

vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,

toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.


Escuta a hora espandongada da volta.

Homem depois de homem, mulher, criança, homem,

roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,

homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem,

imaginam esperar qualquer coisa,

e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,

últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,

já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam.


Escuta a pequena hora noturna de compensação,

leituras, apelo ao cassino, passeio na praia,

o corpo ao lado do corpo, afinal distendido,

com as calças despido o incômodo pensamento de escravo,

escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir,

errar em objetos remotos e, sob eles soterrados sem dor,

confiar-se ao que bem-me-importa

do sono.


Escuta o horrível emprego do dia

em todos os países de fala humana,

a falsificação das palavras pingando nos jornais,

o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores,

os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,

a constelação das formigas e usurários,

a má poesia, o mau romance,

os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,

o homem feio, de mortal feiúra,

passeando de bote

num sinistro crepúsculo de sábado.


VI


Nos porões da família

orquídeas e opções

de compra e desquite.

A gravidez elétrica

já não traz delíquios.

Crianças alérgicas

trocam-se; reformam-se.

Há uma implacável

guerra às baratas.

Contam-se histórias

por correspondência.

A mesa reúne

um copo, uma faca,

e a cama devora

tua solidão.

Salva-se a honra

e a herança do gado.


VII


Ou não se salva, e é o mesmo. Há soluções, há bálsamos

para cada hora e dor. Há fortes bálsamos,

dores de classe, de sangrenta fúria

e plácido rosto. E há mínimos

bálsamos, recalcadas dores ignóbeis,

lesões que nenhum governo autoriza,

não obstante doem,

melancolias insubornáveis,

ira, reprovação, desgosto

desse chapéu velho, da rua lodosa, do Estado.

Há o pranto no teatro,

no palco ? no público ? nas poltronas ?

há sobretudo o pranto no teatro,

já tarde, já confuso,

ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo,

vai minar nos armazéns, nos becos coloniais

onde passeiam ratos noturnos,

vai molhar, na roça madura, o milho ondulante,

e secar ao sol, em poça amarga.


E dentro do pranto minha face trocista,

meu olho que ri e despreza,

minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado,

que polui a essência mesma dos diamantes.


VIII


O poeta

declina de toda responsabilidade

na marcha do mundo capitalista

e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas

promete ajudar

a destruí-lo

como uma pedreira, uma floresta

um verme...
.
.
.
Carlos Drummond de Andrade...

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