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quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Testamento do Brasil...


Que já se faça a partilha.

Só de quem nada possui

nada de nada terei.

Que seja aberto na praia,

não na sala do notário,

o testamento de todos.

Quero de Belo Horizonte

este píncaro mais áspero,

onde fiquei sem consolo,

mas onde floriu por milagre

no recôncavo da brenha

a campânula azulada.

De São João del-Rei só quero

as palmeiras esculpidas

na matriz de São Francisco.

Da Zona da Mata quero

o Ford envolto em poeira

por esse Brasil precário

dos anos vinte (ou twenties),

quando o trompete de jazz

ruborizava a aurora

cor de cinza de Chicago.

Do Alto do Rio Negro

quero só a solidão

compacta como o cristal,

quero o índio rodeando

o motor do Catalina,

quero a pedra onde não pude

dormir à beira do rio,

pensando em nós-brasileiros

- entrelaçados destinos -

como contas carcomidas

de um rosário de martírios.

De Lagoa Santa quero

o roxo da Sexta-feira,

quero a treva da ladeira,

os brandões da noite acesa,

quero o grotão dos cajus,

onde surgiu uma vez

no breu da noite mineira

uma alma doutro mundo.

Da porta pobre da venda

de todos os povoados

quero o silêncio pesado

do lavrador sem trabalho,

quero a quietude das mãos

como se fossem de argila

no balcão engordurado.

Ainda quero da vila

a ira que se condensa,

a dor imóvel e dura

como um coágulo no sangue.

Da Fazenda do Rosário

quero o mais árido olhar

das crianças retardadas,

quero o grito compulsivo

dos loucos, fogo-pagô

de entardecer calcinado,

a névoa seca e o não,

o não da névoa e o nada.

Da cidade da Bahia

quero os pretos pobres todos,

quero os brancos pobres todos,

quero os pasmos tardos todos.

Do meu Rio São Francisco

quero a dor do barranqueiro,

quero as feridas do corpo,

quero a verdade do rio,

quero o remorso do vale,

quero os leprosos famosos,

escrofulosos famintos,

quero roer como o rio

o barro do desespero.

Dos mocambos do Recife

quero as figuras mais tristes,

curvadas mal nasce o dia

em um inferno e lama.

Quero de Olinda as brisas,

brisas leves, brisas livres,

ou como se quer um sol

ou a moeda de ouro

quero a fome do Nordeste,

toda a fome do Nordeste.

Das tardes do Brasil quero,

quero o terror da quietude,

quero a vaca, o boi, o burro

no presépio do menino

que não chegou a nascer.

Dos domingos cor de cal

quero aquele som de flauta

tão brasileiro, tão triste.

De Ouro Preto o que eu quero

são as velhinhas beatas

e a água do chafariz

onde um homem se dobrou

para beber e sentiu

a pobreza do Brasil.

Do Sul, o homem do campo,

matéria-prima da terra,

o homem que se transforma

em cereal, vinho e carne.

Do Rio quero as favelas,

a morte que mora nelas.

De São Paulo quero apenas

a banda pobre da fruta,

as chagas do Tietê,

o livro de Carolina.

Do noturno nacional

quero a valsa merencórea

com o céu estrelejado,

quero a lua cor de prata

com saudades da mulata

das grandes fomes de amor.

Do litoral feito luz

quero a rude paciência

do pescador alugado.


Da aurora do Brasil

-bezerra parida em dor -

apesar de tudo, quero

a violência do parto

(meu vagido de esperança)...
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Paulo Mendes Campos...

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