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segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Espelho...


Que rompam as águas:

é de um corpo que falo.


Nunca tive outra pátria,

nem outro espelho;

nunca tive outra casa.


É de um rio que falo;

desta margem onde soam ainda,

leves,

umas sandálias de oiro e de ternura.


Aqui moram as palavras;

as mais antigas,

as mais recentes:

mãe, árvore,

adro, amigo.


Aqui conheci o desejo

mais sombrio, mais luminoso;

a boca

onde nasce o sol,

onde nasce a lua.


E sempre um corpo,

sempre um rio;

corpos ou ecos de colunas,

rios ou súbitas janelas

sobre dunas;

corpos:

dóceis, doirados montes de feno;

rios;

frágeis, frias flores de cristal.


E tudo era água,

água,

desejo só

de um pequeno charco de luz.


De luz?

Que sabemos nós

dessas nuvens altas,

dessas agulhas

nuas

onde o silêncio se esconde?

Desses olhos redondos,

agudos de verão,

e tão azuis

como se fossem beijos?


Um corpo amei;

um corpo, um rio;

um pequeno tigre de inocência

com lágrimas

esquecidas nos ombros,

gritos

adormecidos nas pernas,

com extensas,

arrefecidas

primaveras nas mãos.


Quem não amou

assim? Quem não amou?

Quem?

Quem não amou

está morto.


Piedade,

também eu sou mortal.

Piedade,

por um lenço de linho

debruado de feroz melancolia,

por uma haste de espinheiro

atirada contra o muro,

por uma voz que tropeça

e não alcança os ramos.


De um corpo falei:

que rompam as águas...
.
.
.
Eugénio de Andrade...

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