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quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Psicologia da composição...

I

Saio do meu poema

como quem lava as mãos.


Algumas conchas tornaram-se,

que o sol da atenção

cristalizou; alguma palavra

que desabrochei, como a um pássaro.


Talvez alguma concha

dessas (ou pássaro) lembre,

côncava, o corpo do gesto

extinto que o ar já preencheu;

talvez como a camisa

vazia, que despi.


II


Esta folha branca

me proscreve o sonho,

me incita ao verso

nítido e preciso.


Eu me refugio

nesta praia pura

onde nada existe

em que a noite pouse.


Como não há noite

cessa toda fonte;

como não há fonte

cessa toda fuga;

como não há fuga

nada lembra o fluir

de meu tempo, ao vento

que nele sopra o tempo.


III


Neste papel

pode teu sal

virar cinza;

pode o limão

virar pedra;

o sol da pele,

o trigo do corpo

virar cinza.


(Teme, por isso,

a jovem manhã

sobre as flores

da véspera.)


Neste papel

logo fenecem

as roxas, mornas

flores morais;

todas as fluidas

flores da pressa;

todas as úmidas

flores do sonho.


(Espera, por isso,

que a jovem manhã

te venha revelar

as flores da véspera.)


IV

O poema, com seus cavalos,

quer explodir

teu tempo claro: romper

seu branco frio, seu cimento

mudo e fresco.


(O descuido ficara aberto

de par em par;

um sonho passou, deixando

fiapos, logo árvores instantâneas

coagulando a preguiça.)


V

Vivo com certas palavras,

abelhas domésticas.


Do dia aberto

(branco guarda-sol)

esses lúcidos fusos retiram

o fio do mel

(do dia que abriu

também como flor)

que na noite

(poço onde vai tombar

a aérea flor)

persistirá: louro

sabor, e ácido,

contra o açúcar do podre.


VI


Não a forma encontrada

como uma concha, perdida

nos frouxos areais

como cabelos;

não a forma obtida

em lance santo ou raro,

tiro nas lebres de vidro

do invisível;

mas a forma atingida

como a ponta do novelo

que a atenção, lenta,

desenrola.,

aranha; como o mais extremo

desse fio frágil, que se rompe

ao peso, sempre, das mãos

enormes.


VII


É mineral o papel

onde escrever

o verso; o verso

que é possível não fazer.


São minerais

as flores e as plantas,

as frutas, os bichos

quando em estado de palavra.


É mineral


A linha do horizonte,

nossos nomes, essas coisas

feitas de palavras.


É mineral, por fim,

qualquer livro:

que é mineral a palavra

escrita, a fria natureza

da palavra escrita.


VIII


Cultivar o deserto

como um pomar às avessas:


(A árvore destila

a terra, gota a gota;

a terra completa

cai, fruto!


Enquanto na ordem

de outro pomar

a atenção destila

palavras maduras.)


Cultivar o deserto

como um pomar às avessas:

então, nada mais

destila; evapora;

onde foi maçã

resta uma fome;

onde foi palavra

(povos ou touros

contidos) resta a severa

forma do vazio...
.
.
.
João Cabral de Melo Neto...

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