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sábado, 28 de julho de 2012

Juca Mulato...(Uma Verdadeira Obra Prima...)


Juca Mulato nasceu em Itapira, cidade da zona mogiana do Estado de
São Paulo, em 1917. Seu pai, recém-formado em Direito e fazendeiro
nessa cidade, acabara de publicar na Capital paulista seu poema Moisés.
Exercia agora uma vaga advocacia numa terra quase sem demandas e
dirigia o jornal local, Cidade de Itapira, em cujos prelos imprimiu o
primeiro exemplar do seu poema.


Foi no ambiente da fazenda Santa Catarina da Capoeira do Meio e na
paz e no silêncio do parque que se debruça sobre o Cubatão, bairro no
qual serpeja o Rio da Penha, em cujas margens bivacavam ciganos, que
a imagem do caboclo do Mato e sua alma lírica empolgaram o
advogado-poeta.


E a Filha da Patroa?


Essa, ainda hoje, nascerá no coração de cada leitor do poema quando
haja atingido a idade do amor. É uma idéia e um sonho. Continuará a
lembrar, vida afora, a criatura que teria sido o complemento do seu ser,
realização sempre sonhada e impossível de um perfeito amor ideal.


Compõem o poema o Céu e a Terra. Todas as coisas telúricas e celestes,
o chão que abriga o homem e o alimenta e o que há no mistério do azul
quando ele olha para as estrelas. Ali descobre uma nova e mágica dimensão
do universo: os animais, como o prudente e confidente Pigarço e os lerdos
bois pensativos e decorativos; o galo, clarim do dia que ilumina as coisas
para a vida e oferece as maravilhas do mundo ao homem que acorda.


A fala do "Juca" é coloquial e divina. Sai da boca do homem e vem da
conexão mágica que ele tem com as coisas. É que o universo é um eterno
diálogo de vozes mudas. Cabe-lhe comunicá-las às demais criaturas.
Ele é o intérprete da formidável comunhão espiritual que nos envolve numa
harmoniosa coesão de vivências e mistérios regida pela fatalidade dessa
divina força que é o amor ("...Che muove il sole e l`altre stelle...")


Germinal


1


Nuvens voam pelo ar como bandos de garças,

Artista boêmio, o sol, mescla na cordilheira

pinceladas esparsas

de ouro fosco. Num mastro, apruma-se a bandeira

de São João, desfraldando o seu alvo losango.


Juca Mulato cisma. A sonolência vence-o Vem, na

tarde que expira e na voz de um curiango,

o narcótico do ar parado, esse veneno

que há no ventre da treva e na alma do silêncio.

Um sorriso ilumina o seu rosto moreno.


No piquete relincha um poldro; um galo álacre

tatala a asa triunfal, ergue a crista de lacre,

clarina a recolher entre varas de cerdos e

mexem-se ruivos bois processionais e lerdos

e, num magote escuro, a manada se abisma na treva.


Anoiteceu.


Juca Mulato cisma.


2


Como se sente bem recostado no chão!

Ele é como uma pedra, é como a correnteza,

uma coisa qualquer dentro da natureza,

amalgamada ao mesmo anseio, ao mesmo amplexo,

a esse desejo de viver grande e complexo

que tudo abarca numa força de coesão.

Compreende em tudo ambições novas e felizes,

tem desejo até de rebrotar raízes, deitar ramas pelo ar,

sorver, junto da planta, e sobre a mesma leiva,

o mesmo anseio de subir, a mesma seiva,

romper em brotos, florescer, frutificar!


3


"Que delícia viver! Sentir entre os protervos

renovos se escoar uma seiva alma viva

na tenra carne a remoçar o corpo moço...


" E um prazer bestial lhe encrespa a carne e os nervos;

afla a narina; o peito arqueja; uma lasciva

onda de sangue lhe incha as veias do pescoço...


Ei-lo, supino e só, na noite vasta. Um cheiro

acre de feno lhe entorpece o corpo langue

e, no torso trigueiro,

enroscam seus anéis serpentes de desejos

e um pubescente ansiar de abraços e de beijos

incendeia-lhe a pele e estua-lhe no sangue.


Juca Mulato cisma.


Escuta a voz em couro

dos batráquios, no açude, os gritos lancinantes

do eterno amor dos charcos.

É ágil como um poldro e forte como um touro;

no equilíbrio viril dos seus membros possantes

há audácias de coluna e elegância dos barcos.


O crescente, recurvo, a treva em brilho frange

e, na carne da noite, imerge-se e se abisma

como num peito etíope a ponta de uma alfange.


Juca Mulato cisma...


A natureza cisma.


4


Aflora-lhe no imo um sonho que braceja;

estira o braço, enrija os músculos, boceja,

supino fita o céu e diz em voz submissa:

"Que tens, Juca Mulato ?..." e, rebolcado na erva,

sentindo esse cansaço irritante que o enerva

deixa-se, mudo e só, quebrado de preguiça.


Cansado ele? E por quê? Não fôra essa jornada

a mesma luta, palmo a palmo, com a enxada

a suster no café as invasões da aninga?

E, como de costume, um cálice de pinga,

um cigarro de palha, uma jantinha à toa,

um olhar dirigido à filha da patroa?


Juca Mulato pensa: a vida era-lhe um nada...

Uns alqueires de chão, o cabo de uma enxada,

um cavalo pigarço, uma pinga da boa,

o cafezal verdoengo, o sol quente e inclemente...


Nessa noite, porém, parece-lhe mais quente

o olhar indiferente

da filha da patroa...


"Vamos, Juca Mulato, estás doido?

Entretanto, tem a noite lunar arrepios de susto,

parece respirar a fronde de um arbusto.

O ar é como um bafo, a água corrente, um pranto.

Tudo cria uma vida espiritual violenta.

O ar morno lhe fala, o aroma suave o tenta...


"Que diabo !" Volve aos céus as pupilas, à toa,

e vê, na lua, o olhar da filha da patroa...

Olha a mata: lá está! O horizonte lho esboça,

pressente-o em cada moita, enxerga-o em cada poça

e ele vibra, ele sonha e ele anseia, impotente,

esse olhar que passou, longínquo e indiferente!


5


Juca Mulato cisma. Olha a lua e estremece.

Dentro dele um desejo abre-se em flor e cresce

e ele pensa, ao sentir esses sonhos ignotos,

que a alma é como uma planta, os sonhos como os brotos,

vão rebentando nela e se abrindo em floradas...


Franjam de ouro, o ocidente, as chamas das queimadas,

Mal se pode conter de inquieto e satisfeito.

Advinha que tem qualquer coisa no peito

e às promessas do amor a alma escancara ansiado

como os áureos portais de um palácio encantado!...


Mas a mágoa que ronda a alegria de perto

entra no coração sempre que o encontra aberto...


Juca Mulato sofre... Esse olhar calmo e doce

fulgiu-lhe como a luz, como a luz apagou-se.

Feliz até então, tinha a alma adormecida....

Esse olhar que o fitou, o acordou para a vida!

A luz que nele viu deu-lhe a dor que agora o assombra,

como o sol que traz a luz e, depois, deixa a sombra...


6


E, na noite estival, arrepiadas, as plantas

tinham na negra fronde, umas roucas gargantas

bradando, sob o luar opalino, de chofre:

"Sofre, Juca Mulato, é tua sina, sofre...


Fechar ao mal de amor nossa alma adormecida

é dormir sem sonhar, é viver sem ter vida...

Ter, a um sonho de amor, o coração sujeito

é o mesmo que cravar uma faca no peito.

Esta vida é um punhal com dois gumes fatais:

não amar é sofrer; amar é sofrer mais"!


7


E, despertando à Vida esse caboclo rude,

alma cheia de abrolhos,

notou, na imensa dor de quem se desilude

que, desse olhar que amou, fugitivo e sereno,

só lhe restara no lábio um travo de veneno,

uma chaga no peito e lágrimas nos olhos!


A Serenata


1


Canta, Juca Mulato...

Ele pega na viola:

seu dedo nervoso os machetes esfrola.

Solta um gemido o aço vibrado

como um grito de dor de um peito esfaqueado.

É tão suave a canção, tão dolente e tão langue

que cada nota lembra uma gota de sangue

a fluir e a pingar dos lábios de uma chaga.

É noite. A brisa sopra uma carícia vaga.


A turba espera. O terreiro tem brilhos

quando, de chapa, a lua esplende nos ladrilhos

e, sentindo a paixão estuar-lhe a garganta,

Juca Mulato canta:

"Veio coleante, essa mágoa

arrastas triste e submisso;

também choro, veio dágua,

sem que ninguém dê por isso...


Saltas nos seixos de chofre.

Choras. No mundo inclemente,

só não chora quem não sofre

só não sofre quem não sente...


Procuras dentre os abrolhos

ver o céu que astros povoaram.

Eu também procuro uns olhos

que nunca me procuraram...


Os céus não vêem tua mágoa,

nem estas ela advinha...

Veio d’água, veio d’água,

Tua sorte é igual à minha.


Ora em bolhas vãs tu medras,

eu em sonhos bem mesquinhos,

Teu leito é cheio de pedras,

minha alma é cheia de espinhos...


Se uma rama se desfolha

sobre teu dorso e resvala,

corres doido atrás da folha

sem poder nunca alcançá-la.


Às vezes, também, risonho,

um sonho minh’alma junca,

Corro doido atrás do sonho

Sem poder tocá-lo nunca.


Ventura... doida corrida

de uma folha sobre um veio.

Folha... Esperança perdida

de um bem que nunca me veio.


Assim vou, sangrando mágoa

e doido, para onde for

veio d’água, veio d’água

corro atrás da minha dor!"


Alma Alheia


1


Que tens, Juca Mulato ?

Uma tristeza mansa

embaça-lhe o fulgor dos olhos de criança.

Ele é outro...


Um langor anda a abrasar-lhe a pele.

Não sabe definir o que há de novo nele.

Fuma e segue pelo ar uma espiral que esvoaça,

pensa que seu destino é igual a essa fumaça...


"A vida é mesmo assim..." ele cisma tristonho.

"Sai do fogo da dor a fumaça do sonho"...


Da cocheira, um nitrir, de intervalo a intervalo,

vibra no ar... É o pigarço. Esse pobre cavalo

anda esquecido e há muito que, sozinho,

sente a falta que faz o calor de um carinho.

Juca Mulato todo o dia vinha vê-lo...

Afagava-lhe o dorso, acamava-lhe o pelo,

e ele, baixando, quieto, as pálpebras vermelhas,

nitrindo e resfolgando, espetava as orelhas...

Juca Mulato, então, numa voz doce e calma,

dizia-lhe baixinho o que ele tinha n’alma.

Coisa de pouca monta: umas fanfarronadas,

uns receios pueris, façanhas de caçadas,

desafios na viola em noites de luar;

coisas que tinha pejo até de lhe contar,

que sussurrava a custo, onde, por entre os dentes,

a gente advinhava umas frases ardentes:

bocas mordendo um seio em que os bicos quentinhos

tinham a cor da rosa e a ponta dos espinhos...

Ele ria e a risada espoucava-lhe aos pinchos

e o pigarço sisudo explodia em relinchos

que diriam, talvez, traduzido em frases:

"Toma tento, Mulato! Olha bem o que fazes..."


Juca afagando-o, então, murmurava contente:

"Pigarço, você tem uma alma como a gente!"


Hoje, anda abandonado e pesa-lhe o abandono.

Há no seu manso olhar saudades de seu dono.

Quem não vê nesse olhar úmido e cor de enxofre

que esse cavalo sofre?


2


Vê uma ave voar na tarde calma e suave,

vem-lhe o desejo absurdo e doido de ser ave.

Quando junto a uma fonte acaso se debruça,

se a corrente soluça, ele também soluça...

Depois, envergonhado, encolhe-se, procura

no seu imo o porquê dessa vaga ternura.

Até vendo uma flor, comove-se, suspira...

"Juca: toma cuidado... Estás ficando gira...

Deixa de te arrastar, como um doido qualquer,

atrás da tentação de uns olhos de mulher!"


E resolve, consigo, ir altivo e insolente,

fingir que não padece e mostrar que não sente,

montar o seu pigarço, atacar a restinga

às foiçadas, beber um cálice de pinga

na venda do caminho e, entre parvos caipiras,

de mistura, contar três ou quatro mentiras

onde lampeja a faca, onde, aos uivos e aos brados

põe em fuga, triunfante, um bando de soldados!


Revive a ilusão!


Ele é outro! Salvou-se! Insidioso, de novo, um olhar meigo e doce

o alucina, o subjuga, o domina, o amolece...


E nem sabe porque humilhado obedece

à sugestão da luz que cintila naquele

lânguido e triste olhar que nunca olhou para ele.


Fascinação


Tudo ama!

As estrelas no azul, os insetos na lama,

a luz, a treva, o céu, a terra, tudo,

num tumultuoso amor, num amor quieto e mudo,

tudo ama! tudo ama! Há amor na alucinada

fascinação do abismo,

amor paradoxal, humano e forte,

que se traduz nas febres do sadismo,

nessa atração perpétua para o Nada,

nessa corrida doida para a Morte.


Por isso, quando as lianas

em lascívias florais cercam de abraços

o tronco hirsuto e grosso,

têm, no amplexo mortal, crueldades humanas.

Há no erótico ardor de enlaçá-lo, abraçá-lo,

a assassina violência de dois braços

crispados num pescoço

atenazando-o para estrangulá-lo!


É que o amor quer a morte. Num momento

resume a vida, os loucos entusiasmos

dos supremos espasmos...

Nesse furor que o invade,

tem a volúpia da ferocidade,

tem o delírio do aniquilamento!


É por isso que vês, por tudo

uma luta de morte, um desespero mudo:

a insídia da raiz que mina a terra e a esgota,

o caule que ergue o fuste, a rama, em sobressalto,

agitando pelo ar a própria dor ignota,

no torturante amor do mais puro e mais alto!


2


E, na noite estival,

enchendo o Espaço e o Tempo, a Luz e a Treva,

o turbilhão fantástico se eleva

do amor UniversaL. Tudo ama!

As estrelas no azul, os insetos na lama,

a luz, a treva, o céu, a terra, tudo,

num tumultuoso amor, num amor quieto e mudo,

tudo ama! Tudo ama!...


3


Juca Mulato freme. Imerge os olhos entre

as estrelas curiosas. Não sabe que anda o amor nos espaços profundos

a fecundar o ventre

das próprias nebulosas

na eterna gestação de novos mundos...


Ele é a matriz da vida: multiplica

seres e coisas, numa força eterna,

cria o verme, animais que andam de rastros.

Mata e ressurge, estiola e frutifica,

e, pelo espaço rútilo, governa

a prodigiosa rotação dos astros!


E a vertigem do amor, fascinadora,

tudo arrasta, fantástica, nos braços

e a terra que palpita, canta e chora,

ora imersa na treva ora imersa na aurora,

leva através do Tempo e dos Espaços...


Acendendo no olhar um lampejo divino,

Juca Mulato cede à vertigem que o enlaça

e brada num transporte:

"Arrasta-me também, no turbilhão que passa!

Leva-me ao teu destino,

Amor que vens para a Vida e que vais para a Morte!"


Lamentação


1


"Amor?

Receios, desejos,

promessas de paraísos,

depois sonhos, depois risos,

depois beijos! Depois...

E depois, amada?

Depois dores sem remédio,

depois pranto, depois tédio,

depois... nada!"


2


"Também como esse bosque eu tive outrora

na alma um bosque cerrado de emoções.

As palmeiras das minhas ilusões

iam levando o fuste espaço afora.


Floriam sonhos; era uma pletora

de crenças, de desejos, de ambições...

Não havia por todos os sertões

mais luxuriante e mais violenta flora.


Ai! Bosque real, é o tempo das queimadas!...

É agosto, é agosto! O fogo arde o que existe

em turbilhões sinistros e medonhos. Ai de nós!...


Somos almas desgraçadas,

pois na luz de um olhar lânguido e triste

também ardeu o bosque dos meus sonhos..."


3


"Água cantante, soluçante, esse gemente

marulho triste, quantas tristes cismas trás...


E fica incerta, ao ouvir-te a voz, a dor da gente,

se vais cantando por ansiar o que há na frente

ou soluçando pelo que deixaste atrás...


Água cantante, água estuante, é singular

a semelhança em que te iguala à minha sorte:

vais para a frente e nunca mais hás de voltar,

vens da montanha e vais correndo para o mar,

venho da vida e vou correndo para a morte.


Água cantante, ai, como tu, esta alma embrenho

nas incertezas de caminhos que não sei...

E, na inconstância em que me agito, só obtenho

essa ânsia imensa de deixar o que já tenho,

depois a dor de não ter mais o que deixei!"


4


Tenho uma santa em casa; o seu olhar encanta.

O olhar dela é, porém, igualzinho ao da santa.


Quando rezo, nem sei, é como o olhar da corça,

tem, na própria fraqueza, a sua própria força.


Quando o fito minha alma enche-se da incerteza

que há na canoa sem dono á flor da correnteza.


Ele é tal qual o sol, indiferente e mudo,

sem saber quem aclara anda aclarando tudo...


Mas no olhar que o fitou brilha, constantemente,

um reflexo de luz ambicionada e ausente.


Eu nunca vi o mar, mas vendo esse olhar penso

num barco que se afasta onde se agita um lenço...


Ou no doido terror que, em meio de procelas,

há num casco sem leme ou num barco sem velas...


Creio ver o meu vulto em teus olhos, tão vago

como as sombras que espelham a água morta

de um lago.

Eu bem sei que, tal qual na líquida planície,

o meu vulto não vai além da superfície.


Fica à tona, a boiar nessa pupila absorta

como na água parada alguma folha morta..."


5


"Pigarço: a dor me aquebranta...

Quando lembro o olhar que adoro

e que nunca esquecerei,

ah! Sinto um nó na garganta

e choro, pigarço, choro,

eu que até chorar não sei...


Quando, a trote, ela nos via,

debruçada na janela,

nós levávamos, após,

com o pó que do chão se erguia

o nosso olhar cheio dela

e o dela cheio de nós...


Então, pouco me importava

que seu olhar nos seguisse...

Galopava-se a valer...

Quando esse olhar eu olhava

era como se não o visse

tanto o olhava sem ver!


Hoje pago essa ousadia...

Ela os olhos de mi tolhe.

Queixar-me disso por que ?

Antes era eu que não o via,

agora, por mais que me olhe,

é ela que não me vê.


Sou um caboclo do mato

que ronda a luz de uma estrela...

Já viste uma coisa assim?

E o pobre Juca Mulato

morrerá por causa dela

e tu, por causa de mim...


Eu da luz desse olhar garço,

tu da dor que te machuca,

morreremos e, depois,

eu fico sem meu pigarço,

meu pigarço sem seu Juca

e o olhar dela... sem nós dois!"


Presságios


1


Juca Mulato sofre. Em cismas se aquebranta.

Uma viola geme, uma voz triste canta:


"Antes de amar eu dizia:

para cortar na raiz

esta constante agonia

preciso amar algum dia,

amando serei feliz". "Amei... desventura minha!

Quis curar-me e piorei.

O amor só mágoas continha

e aos tormentos que já tinha,

novos tormentos juntei".


2


A cantiga, a gemer, nos ecos agoniza.

A vaga sugestão dessa angústia imprecisa

contamina-lhe a dor que o tortura sem pausa. Juca sofre...


Por que? Não advinha a causa.

Só sabe que, em seu peito, o olhar amado e langue,

deixa um rastro de luz como um rastro de sangue...


Tornou-o, pouco a pouco, a imensa dor que o oprime,

pálido como a cera e magro como um vime.

Tem olheiras cercando os grandes olhos lassos

cor do manto que traz Nosso Senhor dos Passos

quando carrega a cruz na procissão das Dores

no mais tristonho andor de todos os andores...

Mas por que sofre assim? Talvez mesmo ande nisso

artimanhas do Demo e coisas de feitiço...

Precisa, sem demora, ir uma sexta-feira,

à tapera do Roque, abrir sua alma inteira,

contar-lhe o mal que sofre e do peito arrancar

essa mágoa, essa luz, esse olhar!


A Mandiga


1


Juca Mulato apeia.

É macabro o pardieiro.

Junto à porta cochila o negro feiticeiro.

A pele molambenta o esqueleto disfarça.

Há uma faísca má nessa pupila garça,

quieta, dormente, como as águas estagnadas.


Fuma: a fumaça o envolve em curvas baforadas.

Cuspinha; coça a perna onde a sarna esfarinha

a pele; pachorrento inda uma vez cuspinha.


Com o seu sinistro olhar o feiticeiro mede-o.

- Olha, Roque, você me vai dar um remédio.

Eu quero me curar do mal que me atormenta.


- Tenho ramos de arruda, urtigas, água benta,

uma infusão que cura a espinhela e a maleita,

figas para evitar tudo que é coisa feita...

Com uma agulha e um cabelo, enrolado a capricho,

à mulher sem amor faço criar rabicho.


Olho um rasto, depois de rezar um bocado

vou direitinho atrás do cavalo roubado.

Com umas ervas que sei, eu faço, de repente,

do caiçara mais mole, um caboclo valente!

Dize, Juca Mulato, o mal que te tortura.

- Roque, eu mesmo não sei de este mal tem cura...


- Sei rezas com que venço a qualquer mau olhado,

breves para deixar todo o corpo fechado.

Não há faca que o vare e nem ponta de espinho:

fica o corpo tal qual o corpo do Dioguinho...

Mas de onde vem o mal que tanto de abateu?


- Ele vem de um olhar que nunca será meu...

Como está para o sol a luz morta da estrela

a luz do próprio sol está para o olhar dela...


Parece o seu fulgor quando o fito direito,

uma faca que alguém enterra no meu peito,

veneno que se bebe em rútilos cristais

e, sabendo que mata, eu quero beber mais...


- Eu já compreendo o mal que teu peito povoa.

Dize Juca Mulato, de quem é esse olhar?

- Da filha da patroa. - Juca Mulato! Esquece o olhar inatingível!

Não há cura, ai de ti, para o amor impossível.

Arranco a lepra do corpo, estirpo da alma o tédio,

só para o mal de amor nunca encontrei remédio...

Como queres possuir o límpido olhar dela ?

Tu és qual um sapo a querer uma estrela...


A peçonha da cobra eu curo... Quem souber

cure o veneno que há no olhar de uma mulher!

Vencendo o teu amor, tu vences teu tormento.

Isso conseguirás só pelo esquecimento.

Esquecer um amor dói tanto que parece

que a gente vai matando um filho que estremece

ouvindo, com terror, no peito, este estribilho:

"Tu não sabes, cruel, que matas o teu filho?"


E, quando se estrangula, aos seus gemidos loucos,

a gente quer que viva e vai matando aos poucos!

Foge! Arrasta contigo essa tortura imensa

que o remédio é pior do que a própria doença,

pois, para se curar um amor tal qual esse...


- Que me resta fazer ? - Juca Mulato: esquece!


A Voz das Coisas E Juca ouviu a voz das coisas. Era um brado:

"Queres tu nos deixar, filho desnaturado?"


E um cedro o escarneceu: "Tu não sabes, perverso,

que foi de um galho meu que fizeram teu berço?


E a torrente que ia rolar no abismo:

"Juca, fui eu quem deu a água para o teu batismo".


Uma estrela a fulgir, disse da etérea altura:

"Fui eu que iluminei a tua choça escura

no dia em que nasceste. Eras franzino e doente.

E teu pai te abraçou chorando de contente...

- Será doutor! - a mãe disse, e teu pai, sensato:

- Nosso filho será um caboclo do mato,

forte como a peroba e livre como o vento! -

Desde então foste nosso e, desde esse momento,

nós te amamos seguindo o teu incerto trilho

com carinhos de mãe que defende seu filho!


" Juca olhou a floresta: os ramos, nos espaços,

pareciam querer apertá-lo entre os braços!


"Filho da mata, vem! Não fomos nós, ó Juca,

o arco do teu bodoque, as grades da arapuca,

o varejão do barco e essa lenha sequinha

que de noite estalou no fogo da cozinha?

Depois, homem já feito, a tua mão ansiada

não fez, de um galho tosco, um cabo para a enxada?"


"Não vás" - lhe disse o azul - "Os meus astros ideais

num forasteiro céu tu nunca os verás mais.

Hostis, ao teu olhar, estrelas ignoradas

hão de relampejar como pontas de espadas.

Suas irmãs daqui, em vão, ansiosas, logo,

irão te procurar com seus olhos de fogo...

Calcula, agora, a dor destas pobres estrelas

correndo atrás de quem anda fugindo delas..."


Juca olhou para a terra e a terra muda e fria

pela voz do silêncio ela também dizia:


"Juca Mulato, és meu! Não fujas que eu te sigo.

Onde estejam teus pés, eu estarei contigo.

Tudo é nada, ilusão! Por sobre toda a esfera

há uma cova que se abre, há meu ventre que espera.


Nesse ventre há uma noite escura e ilimitada,

e nela o mesmo sono e nele o mesmo nada.

Por isso o que te vale ir, fugitivo e a esmo,

buscar a mesma dor que trazes em ti mesmo ?

Tu queres esquecer? Não fujas ao tormento.

Só por meio da dor se alcança o esquecimento.

Não vás. Aqui serão teus dias mais serenos,

que, na terra natal, a própria dor dói menos...

E fica que é melhor morrer (ai, bem sei eu!)

no pedaço de chão em que a gente nasceu!"



Ressurreição

1


Coqueiro! Eu te compreendo o sonho inatingível:

queres subir ao céu, mas prende-te a raiz...

O destino que tens de querer o impossível

é igual a este meu de querer ser feliz.


Por mais que bebas a seiva e que as forças recolhas,

que os verdes braços teus ergas aos céus risonhos,

no último esforço vão, caem-te murchas as folhas

e a mim, murchos, os sonhos!

Ai! coqueiro do mato! Ai! coqueiro do mato!

Em vão tentas os céus escalar na investida...

Tua sorte é tal qual a de Juca Mulato...

Ai! tu sempre serás um coqueiro do mato...

Ai! Eu sempre serei infeliz nesta vida!"


2


"Ser feliz! Ser feliz estava em mim, Senhora...

este sonho que ergui, o poderia por

onde quisesse, longe até da minha dor,

em um lugar qualquer onde a ventura mora;

onde, quando o buscasse, o encontrasse a toda hora,

tivesse-o em minhas mãos... Mas, louco sonhador,

eu coloquei muito alto o meu sonho de amor...

Guardei-o em vosso olhar e me arrependo agora.

O homem foi sempre assim... Em sua ingenuidade

teme levar consigo o próprio sonho, a esmo,

e oculta-o sem saber se depois o achará...


E quando vai buscar sua felicidade,

ele, que poderia encontrá-la em si mesmo,

escondeu-a tão bem que nem sabe onde está!"


3


E Mulato parou.

Do alto daquela serra,

cismando, o seu olhar era vago e tristonho:

"Se minha alma surgiu para a glória do sonho,

o meu braço nasceu para a faina da terra."


Reviu o cafezal, as plantas alinhadas,

todo o heróico labor que se agita na empreita,

palpitou na esperança imensa das floradas,

pressentiu a fartura enorme da colheita...


Consolou-se depois: "O Senhor jamais erra...

Vai! Esquece a emoção que na alma tumultua.

Juca Mulato volta outra vez para a terra,

procura o teu amor numa alma irmã da tua.


Esquece calmo e forte. O destino que impera

um recíproco amor às almas todas deu.

Em vez de desejar o olhar que te exaspera,

procura esse outro olhar que te espreita e te espera,

que há, por certo, um olhar que espera pelo teu..."
.
.
.
Menotti Del Picchia...

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