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quinta-feira, 13 de setembro de 2012

De repente...


De repente, naqueles dias começaram

a desaparecer pessoas, estranhamente.

Desaparecia-se. Desaparecia-se muito

naqueles dias.


Ia-se colher a flor oferta

e se esvanecia.

Eclipsava-se entre um endereço e outro

ou no táxi que se ia.

Culpado, ou não, sumia-se

ao regressar do escritório ou da orgia..

Entre um trago de conhaque

e um aceno de mão, o bebedor sumia.

Evaporava o pai

ao encontro da filha que não via.

Mães segurando filhos e compras,

gestantes com tricots ou grupo de estudantes

desapareciam.

Desapareciam amantes em pleno beijo

e médicos em meio à cirurgia.

Mecânicos se diluíam

- mal ligavam o torno do dia.

Desaparecia-se. Desaparecia-se muito

naqueles dias.


Desaparecia-se a olhos vistos

e não era miopia. Desaparecia-se

até a primeira vista. Bastava

que alguém visse um desaparecido

e o desaparecido desaparecia.

Desaparecia o mais conspícuo

e o mais obscuro sumia.

Até deputados e presidentes evanesciam.

Sacerdotes, igualmente, levitando

iam, aerefeitos, constatar no além

como os pecadores partiam.


Desaparecia-se. Desaparecia-se muito

naqueles dias.

Os atores no palco

entre um gesto e outro, e os do platéia

enquanto riam.

Não, não era fácil

ser poeta naqueles dias.

Porque os poetas, sobretudo

- desapareciam.


2


Se fosse ao tempo da Bíblia, eu diria

que carros de fogo arrebentavam os mais puros.

em mística euforia. Não era. É ironia.

E os que estavam perto, em pânico, fingiam

que não viam. Se abstraíam.

Continuavam seu baralho a conversar demências

com o ausente, como se ele estivesse ali sorrindo

com suas roupas e dentes.


Em toda a família à mesa havia

uma cadeira vazia, a qual se dirigiam.

Servia-se comida fria ao extinguido parente

e isso alimentava ficções

- nas salas e mentes

enquanto no palácio, remorsos vivos

boiavam

- na sopa do presidente.


As flores olhando a cena, não compreendiam.

Indagavam dos pássaros, que emudeciam.

As janelas das casas, mal podiam crer

- no que viam.

As pedras, no entanto,

gritavam os nomes dos fantasmas

pois sabiam que quando chegasse a hora

por serem pedras, falariam.

O desaparecido é como um rio:

- se tem nascente, tem foz.

Se teve corpo, tem ou terá voz.

Não há verme que em sua fome

roa totalmente um nome. O nome

habita as vísceras da fera

como a vítima corrói o algoz.


E surgiram sinais precisos

de que os desaparecidos, cansados

de desaparecerem vivos

iam aparecer mesmo mortos

florescendo com seus corpos

a primavera dos ossos.


Brotavam troncos de árvore,

rios, insetos e nuvens

em cujo porte se viam

vestígios dos que sumiam.


Os desaparecidos, enfim,

amadureciam sua morte.


Desponta um dia uma tíbia

na crosta fria dos dias

e no subsolo da história

- coberto por duras botas,

faz-se amarga arqueologia.


A natureza, como a história

segrega memória e vida

e cedo ou tarde desova

a verdade sobre a aurora.

Não há cova funda

que sepulte

- a rasa covardia

Não há túmulo que oculte

os frutos da rebeldia.


Cai um dia em desgraça

a mais torpe ditadura

quando os vivos saem à praça

e os mortos, da sepultura...
.
.
.
Afonso Romano de Sant’Anna...

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