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sábado, 4 de agosto de 2012

O pagamento...


Quando é que sai o pagamento?

O pagamento está difícil.


Quando se fará a folha

e se construirá a máquina

que fará o cálculo e os descontos?


E quando se fabricará o dinheiro,

espécia nova de dinheiro,

para fazer o pagamento?

Quem receberá no primeiro lote

quem no segundo e no terceiro

se antes de tudo vier a morte

poupar serviço ao tesoureiro?


O pagamento será difícil.


A espera, quem é que paga a espera

e os extraordinários da esperança

e os serviços (esquecidos) dos pais

e dos avós e dos antiquérrimos?


O pagamento está difícil.


Que contador porá em dia as contas

e qual será o seu critério?

Irá medir produtividade

assiduidade, pequenos méritos

oblíquas faltas, imperfeitos

serões, tarefas de má vontade?

Só sairá o pagamento

depois do inquérito concluído?


O pagamento está difícil.


Nem um simples apontamento

foi tomado, não há controle

e direção?

Ou não houve serviço nunca,

ninguém jamais se empregou

nem patrões existiram nem

saíu produção de nada?

Não houve encomenda de nada

na fábrica inexistente,

e ninguém podia tomar nota

alguma em nenhum escritório?

Não cabe pois reclamar

nem salário nem horas extras

nem demora ou juros de mora?


O pagamento está difícil.


Difícil é o pagamento

ou conceber a estranha folha

que nunca sai

e saindo, não se registra

e registrada, não se paga

e pagando, não vale a cédula

e valendo, o vento a carrega

e carregando, foi bem feito

se não havia o que pagar?


O pagamento está difícil

ou já foi feito antes de tudo

há 40 anos, à sorrelfa

que ninguém lembra ou se acaso lembra

é que o dinheiro era falso

era marcado era maldito

era por todos refugado?


O pagamento está difícil?

Depois de tão anunciado,

solenemente prometido,

foge o caixa, são massacrados

os condutores do dinheiro

tudo é furtado num segundo

e o próprio assalto é simulado?


Some a idéia do pagamento

de tal sorte que niguém mais

lhe conhece o significado

e o que reclamam não reclamam

com intenção de receber

mas por força do triste hábito?

e tornam-se mudos

de voz e gesto

e se esquecem todos

de reclamar e de adiar

e de negar?


Então, de todos olvidado

não mais pensado ou referido

nem na lousa dos dicionários

o pagamento - afinal - saiu.

Para cada um e seu irmão,

seu amigo e seu inimigo,

seu desconhecido, seu antípoda,

seu ascendete e descendente,

seu curió demissionário, seu gato escaldado, seu cachorro caduco,

suas plantinhas de vaso (sem sol) da janela,

seu coração

de válvulas paradas

seu coração

entranhado de cisco

seu coração

já sem forma de

coração.


O pagamento total geral

saiu! saiu!

o pagamento sem escrita

sem cifrão

sem limitação

sem explicação

sem razão

sem código

sem termo

saiu.


Não havia quem recebesse...
.
.
.
Carlos Drummond de Andrade...

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