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sexta-feira, 20 de julho de 2012

A Gente se Acostuma...


Eu sei que a gente se acostuma.

Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamento de

fundos e não ver vista que não sejam as janelas ao redor.

E porque não tem vista logo se acostuma a não olhar para fora.

E porque não olha para fora, logo se acostuma e não abrir

de todo as cortinas.

E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender

mais cedo a luz.

E, à medida que se acostuma, se esquece do sol, se esquece

do ar, esquece da amplidão.


A gente se acostuma a acordar sobressaltado porque está na hora.

A tomar café correndo porque está atrasado.

A ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo.

A comer sanduíche porque não dá para almoçar.

A sair do trabalho porque já é noite.

A cochilar no ônibus porque está cansado.

A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.


A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.

E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos.

E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz.

E não aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra,

dos números, da longa duração.


A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone:

“hoje não posso ir”.

A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.

A ser ignorado quando precisa tanto ser visto.


A gente se acostuma a pagar por tudo o que se deseja e necessita.

E a lutar para ganhar com que pagar.

E a ganhar menos do que precisa.

E a fazer fila para pagar.

E a pagar mais do que as coisas valem.

E a saber que cada vez pagará mais.

E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para

ter com que pagar nas filas em que se cobra.


A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes.

A abrir as revistas e ler artigos.

A ligar a televisão e assistir comerciais.

A ir ao cinema e engolir publicidade.

A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na

infindável catarata dos produtos.


A gente se acostuma à poluição, às salas fechadas de ar

condicionado e ao cheiro de cigarros.

À luz artificial de ligeiro tremor.

Ao choque que os olhos levam à luz natural.

Às bactérias de água potável.

À contaminação da água do mar.

À morte lenta dos rios.

Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo

de madrugada, a não colher fruta no pé, a não ter

sequer uma planta por perto.


A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.

Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando

uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta lá.

Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila

e torce um pouco o pescoço.

Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés

e sua o resto do corpo.

Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando

no fim de semana.

E se no fim de semana não há muito que fazer, a gente

vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem muito

sono atrasado.


A gente se acostuma a não falar na aspereza para preservar a pele.

Se acostuma para evitar sangramentos, para esquivar-se da faca e

da baioneta, para poupar o peito.


A gente se acostuma para poupar a vida.

Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma...
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Marina Colassanti...

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