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quarta-feira, 11 de julho de 2012

Poema Sujo - um fragmento: "Velocidades"...


Mas na cidade havia

muita luz,

a vida

fazia rodar o século nas nuvens

sobre nossa varanda

por cima de mim e das galinhas no quintal

por cima

do depósito onde mofavam

paneiros de farinha

atrás da quitanda,

e era pouco

viver, mesmo

no salão de bilhar, mesmo

no botequim do Castro, na pensão

da Maroca nas noites de sábado, era pouco

banhar-se e descer a pé

para a cidade de tarde

(sob o rumor das árvores)

ali

no norte do Brasil

vestido de brim.

E por ser pouco

era muito,

que pouco muito era o verde

fogo da grama, o musgo do muro, o galo

que vai morrer,

a louça na cristaleira,

o doce na compoteira, a falta

de afeto, a busca

do amor nas coisas.


Não nas pessoas:

nas coisas, na muda carne

das coisas, na cona da flor, no oculto

falar das águas sozinhas:

que a vida

passava por sobre nós,

de avião.


Não tem a mesma velocidade o domingo

que a sexta-feira com seu azáfama de compras

fazendo aumentar o tráfego e o consumo

de caldo de cana gelado,

nem tem

a mesma velocidade

a açucena e a maré

com seu exército de borbulhas e ardentes caravelas

a penetrar soturnamente o rio

noutra lentidão que a do crepúsculo

que, no alto,

com sua grande engrenagem escangalhada

moía a luz.


Outra velocidade tem

Bizuza sentada no chão do quarto

a dobrar os lençóis lavados e passados

a ferro, arrumando-os na gaveta da cômoda, como

se a vida fosse eterna.

E era

naquele seu universo de almoços e temperos

de folhas de louro e de pimenta-do-reino

mastruz para tosse braba,

universo

de panelas e canseiras entre as paredes da cozinha

dentro de um surrado vestido de chita,

enfim,

onde batia o seu pequenino coração.

E se não era

eterna a vida, dentro e fora do armário,

o certo é que

tendo cada coisa uma velocidade

(a do melado

escura, clara

a da água

a derramar-se)

cada coisa se afastava

desigualmente

de sua possível eternidade.

Ou

se se quer

desigualmente

a tecia

na sua própria carne escura ou clara

num transcorrer mais profundo que o da semana.

Por isso não é certo dizer

que é no domingo que melhor se vê

a cidade

- as fachadas de azulejo, a Rua do Sol vazia

as janelas trançadas no silêncio -

quando ela

parada

parece flutuar.


E que melhor se vê uma cidade

quando - como Alcântara

todos os habitantes se foram

e nada resta deles (sequer

um espelho de aparador num daqueles

aposentos sem teto) - se não

entre as ruínas

a persistente certeza de que

naquele chão

onde agora crescem carrapichos

eles efetivamente dançaram

(e quase se ouvem vozes

e gargalhadas

que se acendem e apagam nas dobras da brisa)

Mas

se é espantoso pensar

como tanta coisa sumiu, tantos

guarda-roupas e camas e mucamas

tantas e tantas saias, anáguas,

sapatos dos mais variados modelos

arrastados pelo ar junto com as nuvens,

a isso

responde a manhã

que

com suas muitas e azuis velocidades

segue em frente

alegre e sem memória

É impossível dizer

em quantas velocidades diferentes

se move uma cidade

a cada instante

(sem falar nos mortos

que voam para trás)

ou mesmo uma casa

onde a velocidade da cozinha

não é igual à da sala (aparentemente imóvel

nos seus jarros e bibelôs de porcelana)

nem à do quintal

escancarado às ventanias da época

e que dizer das ruas

de tráfego intenso e da circulação do dinheiro

e das mercadorias

desigual segundo o bairro e a classe, e da

rotação do capital

mais lenta nos legumes

mais rápida no setor industrial, e

da rotação do sono

sob a pele,

do sonho

nos cabelos?

e as tantas situações da água nas vasilhas

(pronta a fugir)

a rotação

da mão que busca entre os pentelhos

o sonho molhado os muitos lábios

do corpo

que ao afago se abre em rosa, a mão

que ali se detém a sujar-se

de cheiros de mulher,

e a rotação

dos cheiros outros

que na quinta se fabricam

junto com a resina das árvores e o canto

dos passarinhos?

Que dizer da circulação

da luz solar

arrastando-se no pó debaixo do guarda-roupa

entre sapatos?

e da circulação

dos gatos pela casa

dos pombos pela brisa?

e cada um desses fatos numa velocidade própria

sem falar na própria velocidade

que em cada coisa há

como os muitos

sistemas de açúcar e álcool numa pêra

girando

todos em diferentes ritmos

(que quase

se pode ouvir)

e compondo a velocidade geral

que a pêra é

do mesmo modo que todas essas velocidades mencionadas

compõem

(nosso rosto refletido na água do tanque)

o dia

que passa

- ou passou -

na cidade de São Luís.


E do mesmo modo

que há muitas velocidades num

só dia

e nesse mesmo dia muitos dias

assim

não se pode também dizer que o dia

tem um único centro

(feito um caroço

ou um sol)

porque na verdade um dia

tem inumeráveis centros

como, por exemplo, o pote de água

na sala de jantar

ou na cozinha

em tomo do qual

desordenadamente giram os membros da família.


E se nesse caso

é a sede a força de gravitação

outras funções metabólicas

outros centros geram

como a sentina

a cama

ou a mesa de jantar

(sob uma luz encardida numa

porta-e-janela da Rua da Alegria

na época da guerra)

sem falar nos centros cívicos, nos centros

espíritas, no Centro Cultural

Gonçalves Dias ou nos mercados de peixe,

colégios, igrejas e prostíbulos,

outros tantos centros do sistema

em que o dia se move

(sempre em velocidades diferentes)

sem sair do lugar.


Porque

quando todos esses sóis se apagam

resta a cidade vazia

(como Alcântara)

no mesmo lugar.


Porque

diferentemente do sistema solar

a esses sistemas

não os sustém o sol e sim

os corpos

que em tomo dele giram:

não os sustém a mesa

mas a fome

não os sustém a cama

e sim o sono

não os sustém o banco

e sim o trabalho não pago.


E essa é a razão por que

quando as pessoas se vão

(como em Alcântara)

apagam-se os sóis (os

potes, os fogões)

que delas recebiam o calor


essa é a razão

por que em São Luís

donde as pessoas não se foram

ainda neste momento a cidade se move

em seus muitos sistemas

e velocidades

pois quando um pote se quebra

outro pote se faz

outra cama se faz

outra jarra se faz

outro homem

se faz

para que não se extinga

o fogo

na cozinha da casa


O que eles falavam na cozinha

ou no alpendre do sobrado

(na Rua do Sol)

saía pelas janelas


se ouvia nos quartos de baixo

na casa vizinha, nos fundos da Movelaria

(e vá alguém saber

quanta coisa se fala numa cidade

quantas vozes

resvalam por esse intrincado labirinto

de paredes e quartos e saguões,

de banheiros, de pátios, de quintais


vozes


entre muros e plantas,

risos,

que duram um segundo e se apagam)


E são coisas vivas as palavras

e vibram da alegria dó corpo que as gritou

têm mesmo o seu perfume, o gosto

da carne

que nunca se entrega realmente

nem na cama

senão a si mesma

à sua própria vertigem

ou assim falando ou rindo

no ambiente familiar

enquanto como um rato

tu podes ouvir e ver

de teu buraco

como essas vozes batem nas paredes do pátio vazio

na armação de ferro onde seca uma parreira

entre arames

de tarde

numa pequena cidade latino-americana.


E nelas há

uma iluminação mortal

que é da boca

em qualquer tempo

mas que ali

na nossa casa

entre móveis baratos

e nenhuma dignidade especial

minava a própria existência.


Ríamos, é certo,

em torno da mesa de aniversário coberta de pastilhas

de hortelã enroladas em papel de seda colorido,

ríamos, sim,

mas

era como se nenhum afeto valesse

como se não tivesse sentido rir

numa cidade tão pequena.


O homem está na cidade

como uma coisa está em outra

e a cidade está no homem

que está em outra cidade


mas variados são os modos

como uma coisa

está em outra coisa:

o homem, por exemplo, não está na cidade

como uma árvore está

em qualquer outra

nem como uma árvore

está em qualquer uma de suas folhas

(mesmo rolando longe dela)

O homem não está na cidade

como uma árvore está num livro

quando um vento ali a folheia


a cidade está no homem

mas não da mesma maneira

que um pássaro está numa árvore

não da mesma maneira que um pássaro

(a imagem dele)

está/va na água

e nem da mesma maneira

que o susto do pássaro

está no pássaro que eu escrevo


a cidade está no homem

quase como a árvore voa

no pássaro que a deixa


cada coisa está em outra

de sua própria maneira

e de maneira distinta

de como está em si mesma


a cidade não está no homem

do mesmo modo que em sua

quitandas praças e ruas...
.
.
.
Ferreira Gullar...

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