Querido amigo,
Eu sou má por natureza.
Acho que te contei isso na primeira vez em que nos vimos.
Não sei se te lembras bem, eras tão novo!
Aproximei-me de ti como quem não quer nada e tu,
com as poucas palavras que conhecias, perguntaste o meu nome.
Fiz mistério, disse que não diria, e, por fim, acabaste por não me perguntar mais.
Fora este o meu primeiro ato de maldade.
Apenas a curiosidade, aquele sentimento amargo
por não saberes como chamar aquela que te acompanhava.
Lembro-me de por várias vezes te alertar de minha
má índole, mas, tu, tão bondoso que és, apenas retrucavas
dizendo que a amizade é algo incondicional, que amamos sem
querer saber como nem por quê.
Achei graça de tua ingenuidade, primeiramente porque eu não o amava.
Eu apenas via em ti uma possibilidade de fugir de minha
solidão, de sugar toda a tua alegria para satisfazer a minha própria.
Eu apenas via em ti mais uma pobre alma a ser atormentada pela minha presença.
Eu te acompanhava e te roubava várias pequenas coisas:
um sorriso, um suspiro, um beijo, um abraço e mesmo as
coisas materiais como um chaveiro, uma foto, ou um guardanapo
de papel que usaste para escrever um telefone.
Eu te roubava aquilo que te enchia o peito de alegria, que
te fazia encher os olhos com um brilho invejável que por muitas
vezes chegava a me apagar ao teu lado.
Ah, eu sou mesmo cruel!
Roubei-te os momentos mais exaltantes!
Todos os passeios, os toques, as madrugadas, as idas ao cinema e os cafés!
Eu guardava tudo com uma frieza doentia e tu, sempre
tão contente, não percebias meus pequenos furtos.
Não notava que ao teu lado eu registrava cada momento teu de alegria.
Então, quando minha bagagem já se encontrava cheia de
momentos, mostrei a ti tudo aquilo que eu vinha guardando
com tanto zelo até então.
Mostrei-te cada pequena peça de minha bagagem e
arranquei toda a tua felicidade com minhas unhas afiadas e gélidas.
A cada lembrança que recordavas, era como se eu
te arranhasse a alma mais fundo com elas.
E como as feridas ardiam!
Eu me rejubilava a cada vez que de teus olhos
escorriam as lágrimas de dor.
Fora somente então que percebeste a minha real maldade.
Encaraste-me com os olhos turvos de agonia e me
amaldiçoas-te, procurando pelo nome que eu não havia dito,
procurando por aquilo que te faltava, aquela dor sem nome.
E eu, maldosa, machucava-te, cortava-te a pele e fazia
escorrer o sangue que pulsava junto à dor no peito.
Entretanto, quando abrias a blusa, procurando pela fonte
dela, nada encontrava a não ser aquele sofrimento sufocante
que fazia o ar parecer insuficiente para teus pulmões.
E ali, no auge de tua agonia, eu sussurrei ao teu ouvido o meu nome.
Longas foram as noites que passamos juntos.
Longas foram as noites em que eu te atormentei com minha bagagem.
Longas foram as noites em que a ciência de que tua
felicidade ainda estava a quilômetros de distancia o atormentou
e fez com que teus sonhos fossem perseguidos.
Perseguidos por mim.
Mas sabes...
Tinhas razão em uma coisa.
A amizade e o amor são incondicionais e tu dependes de
mim, pois eu guardo em minha bagagem as tuas memórias.
E não há forma de revê-las se não te renderes à dor de minha presença.
E tu dependes de mim, pois, como tua fiel amiga, eu sou a
recordação diária do quanto te importas com aqueles que
ajudaram a construir as tuas memórias.
E tu dependes de mim, pois, quando, no meio da noite,
sentes aquela dor sufocante de que algo esta faltando, é
o meu nome que gritas, pedindo pelas memórias e pelo
consolo de que eu ainda estou a colhê-las.
Vá, continue a construir tuas memórias...
Mas não te esqueças: Eu não deixei de te acompanhar.
Aliás, ainda estou ao teu lado, quando, em teus momentos
de júbilo, colho tuas alegrias.
Ainda estou ao teu lado, quando, nos teus dias mais nefastos de
solidão, provoco-te as lágrimas e te faço lembrar meu nome.
O nome da dor.
De sua eterna amiga.
Saudade...
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