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quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Bumba-meu-poeta...


A família do poeta:

Salve, salve, seu poeta.

Você hoje anunciou

que vai dar uma função

na praia do Acaba-Mundo.

Juntou-se a família toda

para visitar você,

trouxemos alguns vizinhos

para engrossar a função.


O poeta:

Se sentem sem cerimônia,

sejam benvindos, merci.

Os mais malucos na frente

- não têm medo de aplaudir -,

os ajuizados, no fundo.


O professor:

Seu moço me dê licença

de vir arejar um pouco:

Estou com a cabeça quente

de tantas aulas que dei.


O poeta:

Muito obrigado ao senhor,

não me ensinou coisa alguma.

Sendo assim, caí no mundo,

aprendi foi por mim mesmo

sem o método Decrolly.

Louvada seja a burrice,

não tentou meu professor

a me ensinar coisa errada

no deserto do colégio,

coisa alguma me ensinou.


A primeira namorada:

Também eu vim te rever...

Você se lembra de mim?


O poeta:

Como não! Se hoje mesmo

seguro nesta caneta

para um poema dançar,

é porque há quinze anos

você levantava os olhos,

olhou com força para mim,

depois levantou os braços,

me abraçou tão carinhosa.

Como não...se nem um dia

pude esquecer-te, Isabel.

Se a função sair batuta

deveremos a você.

Se assente aqui, faz favor,

neste lugar destinado

às pessoas de destaque...

No lugar de honra mesmo.


Coro de vitrolas:

Tem uma pinta na cara,

o olhar moreno e quieto.

Antigamente seria

uma das nove inspiradoras

que sopravam nos ouvidos

tal qual o Espírito Santo...

no tempo em que os poetas

inda usavam cabeleira.

Tem uma pinta na cara.


O arlequim:

Sou personagem da estranja,

me transportaram pra cá.

Para falar com franqueza

embora me chamem gringo

me sinto melhor aqui

do que me sentia lá.

Não permita Deus que eu morra

tendo voltado pra lá.

Eu aqui tenho prestígio,

uso pencinê de ouro,

empresto dinheiro a juros,

sou ouvido na eleição.


O poeta:

"Seu" diplomata da estranja,

você manda como diz.

Quer um pedaço do reino?


O jazbande:

"Seu" dono da festa, aqui

chegamos meio atrasados.

Encontramos no caminho

um povão em desatino,

vai derrubar o governo.

Ao povo nos ajuntamos,

demos concerto pra ele.

Esse povo não faz nada

sem auxílio musical.


O poeta:

Chegaram já meio tarde,

a festa está começando.

Precisamos de uma música

mais infernal, violenta,

para sacudir o povo.

Enquanto não se fabrica,

vão tomando seus lugares,

não deve o povo tardar.


O deputado:

(Que multidão oportuna!

Arranjarei uns mil votos,

vou ganhar as eleições.)

Meus amigos, vim trazer

uma esplêndida notícia:

as últimas leis sociais

exigem que o povo mande.

Derrubemos os tiranos,

transformemos este mundo

num paraíso ideal.

Eu trago instrução de graça,

remédios aos pontapés,

um grande auxílio à lavoura,

projeto à indústria, o comércio,

só faço o que o povo quer.

É claro que meu rival

não tem competência alguma.

Levarei todos de táxi

pela estrada do porvir.

Em troca somente exijo

que um votinho aqui me dêem.


O poeta:

Passa fora: esta cantiga

não pega mais pro pessoal.

Abaixo a demagogia.

Tome cheiro da festança,

seu deputado de fraque,

depois vá embora daqui

cantar noutra freguesia.

Conosco não violão.


O deputado:

(Felizmente neste mundo

nem todos têm vergonha.

Vou falar com o imperador,

vou falar com o relequim:

providências se darão

pra minha vitória em regra.

Esperem um pouco, canalhas.)

Minha gente, até a volta

se divirtam, minhas flores.


Coro:

Sujeito pra falar mal!

Conosco não violão.


Jornalista:

"Seu" poeta, será possível

se gozar umas casquinhas

de tão celebrada festa?


O poeta:

Faça o favor de chegar,

você é persona grata.

Talvez uns trinta por cento

do que o poeta imagina

foi você que o forneceu.

Você traz algum suicídio,

caso de amor cabeludo,

revolução fracassada,

desastre na lua, o quê?


O jornalista:

Tudo isso que o senhor disse

mais o resto que pensou.


O rancho Lira do Amor:

Ô abre alas que eu quero passar,

eu sou da lira do meu natural.

Não devo pedir licença,

povo é que tem que pedir

pra mim poder funcionar.

Meu rancho já está chegando,

estão afinando as flautas,

os violões e os cavaquinhos

ali no clube da esquina.


O poeta:

Entre, que a casa é sua!

Todos nós te desejamos,

aí vem nosso amigo, vem!


Coro:

Entre que a casa é tua!

Todos nós te desejamos,

aí vem nosso amigo, vem!


O doutor:

Desculpem, que sou penetra!...

Não creio que fui chamado.

Mas estejam descansados:

também sou meio poeta.

Mas estejam descansados:

não vim fazer poesia.

Vi o poeta na praia,

me pareceu assim doente.

Poeta, incline a cabeça:

abra os olhos bem, assim.

O diagnóstico sibilino,

esferoidal, apocalíptico,

acusa sintomas graves

de loucura neste poeta.

Este poeta, já o declaro,

não me cheira muito bem.

Anda meio hipocondríaco,

inquieto, mefistofélico.

Mas aplico já o remédio:

leia, hoje, os meus tratados,

que ficará logo bom.


O agitador:

Poetas de todos os planetas,

uni-vos, senão vocês

nunca mais se aguentarão,

com o primado econômico

do nosso mundo atual.

Já trabalhei muito hoje,

camaradas, quero entrar.


O poeta:

Por minha parte consinto

que entres nesta função.

Quanto ao resto do pessoal

não sei se concordará.


Coro:

Qual o quê, o coro serve

é só pra dizer amém,

tem mesmo que concordar.


O submarino:

Eu sou cavalo-marinho,

danço muito bem no mar.

Eu vim do fundo do mar

trazer aqui a mãe-d'água

para neste baile entrar.


A mãe-d'água:

Pelas teorias modernas

o homem provém do mar.

É por isso que você

prestava tanta atenção

aos contos que te contei

nos seus tempos de menino.

Prestavas mais atenção

aos meus cabelos cacheados.

Hoje estão cortados curto,

me vestiram de maiô,

não me reconheces mais.


O poeta:

Ó mãe-d'água de maiô,

de cabelos aparados,

inda mais bonita estás.


O avião:

Urgente das nebulosas

parti com nevoeiro denso,

trazer esta alma penada

pra concorrer à função.


A namorada morta:

Não sou mais alma penada...

alguém se lembra de mim.


O rancho Lira do Amor:

Em garridos movimentos

em lindas evoluções

com escolhidos pensamentos

viemos saudar o poeta

cantor de tantas paixões

salve, salve, vate ilustre

alma rara de safira

que o segredo da harmonia

guardaste na tua lira

de tão divinal poesia

a ti nossas emoções

tão amigos corações.


O poeta:

Obrigado minha gente!

Vocês ajudam um pedaço

o brilho desta função.


São Francisco:

Aproveitei uma folga

que o inspetor do céu me deu,

também vim aqui dançar

pra me lembrar do meu tempo.

Louvado pra sempre o vento

que nas suas asas me trouxe.

Louvada seja esta gente

que de vez em quando esquece

as tristezas desta vida,

cai na farra, que nem eu

na minha primeira fase.


Coro:

Este falar contamina

até quem vem do outro mundo,

ninguém lhe pode escapar.


O poeta:

Caia tudo ajoelhado

pra louvar o bruto poeta,

nosso amigo, nosso irmão.

Quero às vezes imitar

outro poeta neste mundo,

escolho então São Francisco:

mas não consigo imitar,

nem de longe, tal poeta.

Meu consolo é que não imito,

afinal, poeta algum.

De qualquer forma pareço

com São Francisco, senhores:

não há dúvida que sou,

ai, São Francisco às avessas.

Louvemos o bruto poeta,

nosso amigo, nosso irmão.


Coro:

Louvemos o bruto poeta,

nosso amigo, nosso irmão.


A rima:

Eu sou órfã, ninguém mais

me dá atenção no mundo.

O meu dó é bem profundo.

Deixem-me entrar...não escutais?


O poeta:

Pode entrar, mas se comporte:

não insista nas melodias.


A mulher da vida:

Se a turma aí tem escrúpulos,

não faço questão de entrar;

eu sou reserva do rancho.


O poeta:

Pode entrar, que nesta casa

todo o mundo lhe quer bem.


O anjo da guarda;

Mas que festa extraordinária,

nem lá no céu tem assim.


O poeta:

No tempo que eu precisava

dum anjo pra me guardar,

você estava tentando

as garotas mais sublimes

que nasceram da mulher.

Agora que me tornei

um sujeito tão importante,

um poeta-matriculado

com poder discricionário,

é que você me aparece.

És o tipo do adesista.

Em todo o caso, consinto

tome parte na festança,

mas dobre as asas direito,

se comporte muito bem.


O anjo da guarda:

Que sujeito pretensioso,

não sou seu anjo da guarda,

você nunca teve tal.

Sou o anjo de São Francisco,

trago aqui um radiograma

pra ele voltar pro céu.


São Francisco:

Meus amigos até a volta,

esmola pra uma igreja

que estou construindo no céu.


O poeta:

Meu santo, sentimos muito,

nossa pobreza é bem grande,

nem mesmo o senhor é assim.

Temos crise do café.


Coro:

Temos crise do café.


O poeta:

(Tantas pessoas declaram

que vão embora da festa,

que esta festa não está boa...

Acabam todos ficando,

com exceção do deputado.

Aliás, o prazer é meu.)


O deputado:

Senhores, o povo evém,

ganhou a revolução.

Saudemos o arrebol

dos novos tempos pro reino.

Chega aí o ditador

com seu luzido cortejo,

precedido de clarins.


Coro:

Sujeito pra falar bem!

Esta turma é que nos serve,

o resto só tem garganta.


Conosco sim bandolim,

Conosco sim bandolim,

Conosco sim bandolim.


Ditador, Mascates, Bacharéis,

Soldados, Povo:


Tomemos conta depressa

deste reino universal

antes que alguém mais esperto

passe na frente da gente.

Tomemos conta depressa

deste reino universal.

Eletrifiquemos o reino;

distribuiremos chuchus

aos pobres e torcedores,

bananas aos discordantes.


O deputado:

Esta casa está se enchendo

de gente a mais não poder.

Que calor, que confusão.

Não há dúvida, não sobra

uma casquinha pro poeta.


Coro:

Não tem lugar pro poeta!

Não tem lugar pro poeta!


O poeta:

Fiquem quietos, vou sair.

Estão todos na sua casa!

Me acostumei há bem tempo

a ceder o melhor quarto

pro relequim repousar.

Só me admiro do coro

a quem ensinei o abecê!...


Eu que voluntariamente

até adotei agora

o seu modo de falar,

não estabeleci distinção

pra maior facilidade

desta festa universal!

...Mas que sujeitos ingratos!

Tirei-os desta cachola,

é natural que se zanguem,

acabo me conformando.

Vou-me embora pra folhinha.

Recorrerei ao Senhor,

meu Supremo Tribunal.

Mas antes de dar o fora

faço questão de avisar:

este assovio que agora

vocês usaram para mim,

eu vou usá-lo também.

Vocês me apupam, maltratam,

mas acabam me elevando

um busto na praça pública,

inda precisarão de mim.

Pois bem, apurem os ouvidos:

desde já estou vaiando

meu busto que se erguerá

na posteridade remota.


O doutor:

Este poeta adstringente

continua, meus senhores,

a não me cheirar muito bem.

Incline a cabeça, moço,

deixe-me ver a esclerótica...

Éa mesmo um caso perdido.

O diagnóstico, pelo menos,

se salvou, é o principal.


Coro:

O meu poeta morreu!

Que será feito de mim?

Vamos buscar outro poeta

em qualquer lugar - aqui!..
.
.
.
Murilo Mendes...

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