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quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Fado do grande e horrível crime...


Por essas feiras do alfoz

Do Porto, leal cidade

Brutal e triste, uma voz

Levanta um pregão feroz

De crime e fatalidade.


Junta-se o povo de roda,

Crianças, velhos e moços

Que seduz a nova moda;

E os olhos da roda toda

São como bocas de poços...


E a nova moda é já velha

Recente, embora, a toada;

Revelha, velha, revelha,

Que a todas mais se assemelha,

De novo, não conta nada.


Vem dos inícios do mundo

(Por não sei que ódio divino)

De quando, a errar vagabundo,

Caim desceu bem ao fundo

Do seu maldito destino.


Só a maneira é que é vária

De um mesmo fado cumprir

A sinistra prole do pária.

E a assistência é extraordinária,

Que o bom povo quer ouvir!


Desfolha um bandolim gasto

Seu choro falso e palreiro

Frente a uma casa de pasto,

E um alto grito nefasto

Berra por todo o terreiro.


Canta uma mulher pejada

Senhora-do-Ó fadista,

Ou uma garota enfezada

Que tem olhos de enjeitada

Mas pretende ser corista...


Canta um velhote que tosse,

Babando as barbas de neve,

Ou um rapazinho precoce,

Com esse ar dos a quem roce

A asa da morte breve...


Canta um esbelto vadio

De torvo olhar cor de lodo,

Que esguicha um mau riso frio

À triste a quem mata o cio

E apanha o dinheiro todo...


Canta uma cega, rolando

Por todo o alvar poviléu

Seus olhos vítreos olhando...

Canta um fado miserando,

Não mais, porém, do que o seu!


Canta uma família inteira,

- Pai, mãe, avó, quatro filhos -

E ao calar-se a cantadeira,

É a pobre velha gaiteira

Que intercala os estribilhos...


Um seráfico gandula

que inda em falsete se exprime

E entre o público circula,

Pregoa uma canção chula

Mailo grande e horrível crime!


Surdo, o violão dlão toa

E o bandolim se lhe enlaça

Ou, carpindo a sós, ressoa

Uma guitarra, a mais boa

Companheira da desgraça.


E enquanto, em plena quermesse

De movimento, cor, sol,

A própria luz arrefece,

A voz de lástima e prece

Desfia o macabro rol:


Cose um marido a facadas

A mulher que estremecia

E as mãos inda ensanguentadas,

Vai, de entre seus camaradas,

Esganar quem o traía!


Jovem mãe abandonada

Com seu filhinho nos braços,

Uma malaventurada

Deixa-o numa água-furtada

Retalhadinho em pedaços!


No mais vil prédio dum beco

Dos que a decência condena,

Sem que de tal corra um eco,

Num charco de sangue seco

Seis dias jaz Madalena!


Um filho desnaturado

Talha a golpes de podoa

O ventre em que foi gerado...

E o corpo em sangue escoado

Levanta a mão que abençoa!


E, por bordéis e hospitais

Por mesas de anatomia,

Por salas de tribunais,

Por colunas de jornais,

Se estira o rol dia a dia...


Nos intervalos do fado,

Fala em prosa a cantadeira:

Maldiz o bruto malvado

Num discurso alto clamado

Com vozes de carpideira.


E, num tom quase faceto,

O loiro e reles menino

Mostra ao povinho um folheto

Que traz, moldurada a preto,

Uma foto do assassino...


Que verde curiosidade,

Que gosto de sangue e morte,

Que dó, que ferocidade,

Preme ali tal sociedade

Neste culo à negra sorte?


Sentimental, caricato

De rapapés ao terror,

À história do retrato

Segue-se o extenso relato

De outro crime inda melhor.


E enquanto um diz que são tretas,

E os demais olham inquietos,

E outro, que tem quaisquer letras,

Decifra essas cifras pretas

A um grupo de analfabetos,


Sob o imenso azul perfeito

Como abóboda de igreja,

As mães de filhos de peito

Tremem, sem achar direito

De acusar quem quer que seja...
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José Régio...

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