Pesquisar este blog

Meus Vídeos...

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

A fera diurna...


Agora que as pupilas já tocadas

de pecado - que por quererem dela

a exata imagem, antes que a bela,

a terrível, que nisto o puro existe,

viram na fonte as águas desvendadas

não se impelirem mais que a um sono triste -

o que fora magia são corolas,

da presença da morte alucinadas

- agora, fera, em que mais te consolas?

De que disfarce íntimo se vale

a pedra contra ti? (nada resiste

à límpidez dos olhos sem amor).

Calaste o mundo e o mundo, sem que fale,

não te dará do tempo a flor da flor.


Caminhas entre o céu e o vale. E o vale

onde todo crescer obscuro e assomo

é cego caminhar às abstratas formas

da morte - ó formas exatas

e invioláveis! - fulgor que espera o pomo!

o vale é vale só e te dispensa.

Horizontal solidão, te desconhece

e anula. Estás só, homem sem gnomo!

que o resto é céu recurvo e indiferença.


As sucessivas túnicas do dia

despiu, como se em pranto se negasse,

e em derredor de si rompera espelhos

deslizantes de som e cor, oh melodia

caindo sobre as flores nos vermelhos

e trágicos jardins! Mas eis que a face

da que diurna quer ser sendo noturna,

pela pureza própria corrompida,

se ergue inodora e vã - já morta nasce:

a beleza é mais frágil do que a vida.


Esperamos a morte sem defesa.

Lúcida espera, enquanto na diuturna

cintilação, te esvais, cristal, estende-

se em silêncio e veludo, e se propaga

o musgo pelos muros da tristeza.

Curvam-se sobre nós astros e ramos

que esplendem. Soluçamos no que esplende:

o fruto, a rosa, a brisa que te apaga,

as árvores da música. Esperamos.


Talhado por mim mesmo no ante-sono

de mim, do barro erguera-me, escultura.

A luz de antes de ser dourava as formas

ignoradas de si, madurecia-as.

Até que enfim me soube ser o nono

Orfeu, boca madura, para as cousas

chamar pelo seu nome. Entanto, impura

boca, árvora lúcida, hoje não ousas

florir com tua voz as formas frias.

Adão, Adão, violaste a fonte pura.

Éden não houve, à margem do Pison

meditas. Estás só. Nada te esquece

que águas e nuvens passam. E a esse som,

teu coração - fruto último - emurchece...
.
.
.
Ferreira Gullar...

Nenhum comentário:

Postar um comentário