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domingo, 16 de setembro de 2012

A música popular entra no paraíso...


Deus - Quem é este baixinho que vem aí, ao som do violão,
de copo cheio na mão?


São Pedro - Senhor, pelos indícios, só pode ser o vosso
servo Vinicius, Menestrel da Gávea e dos amores inumeráveis.


Deus - Será que ele vem fazer alaúza no céu, perturbando
o coro dos meus anjos-cantores, diplomados pela Schola
Cantorum do mestre São Jorge, o Grande?


São Pedro (hesitante) - Bem... Eu acho, com a devida
licença, que ele traz um som novo, mais terrestre, menos
beatífico, é certo, mas com uma suavidade brasileira inspirada
nos seresteiros seus avós, os quais já têm assentos cativos junto
ao vosso trono, Senhor.
Coisa mui digna de vossa especial atenção.


Deus - Hum, hum...


São Pedro - Posso continuar, Senhor?


Deus - Vá dizendo, Pedro. É sabido que você tem um
fraco por essa gente que canta de noite, esteja ou não
pescando, principalmente não estando.


São Pedro - Pois eu digo, Senhor, que esse baixinho aí,
todo simpatia e delicadeza, é um de vossos bons servidores
na Terra, pois combateu a maldade pela ternura, a injustiça
pela fraternidade, e compôs os cânticos profanos que, elevando o
 coração dos ouvintes, fazem o mesmo que os cânticos sagrados.


Deus (surpreso) - O mesmo?


São Pedro - O mesmo, Senhor, porque vós permitistes
ao homem trilhar a vida direta ou a vida indireta, conforme
o gosto dele.
Este poetinha escolheu a segunda, por inclinação natural, e
manifestou à sua maneira própria o amor à humanidade,
distribuindo-o de preferência, na medida do possível, a
umas quantas eleitas.

Deus - Não terá sido antes dispersão do que concentração?


São Pedro - As duas coisas, mas unidas tão sutilmente!
E essa unidade paradoxal, mas espontânea, produziu os
hinos do amor carnal, nos quais foi glorificado o corpo
que concedestes às criaturas, e por essa forma glorificou-se
a vossa divina Criação.


Deus - Menos mal, se assim foi. Então Psse... como lhe chamas?


São Pedro - Vinicius, não o patrício romano, que
o amor conduziu do paganismo à fé cristã, mas o de
Melo Moraes, filho de pais que curtiam o Quo Vadis.
Este nasceu diretamente para o amor, e não precisou
meter-se nas embrulhadas do paganismo de Nero para
achar o rumo de sua alma.
Ele já estava traçado pelas estrelas de outubro, vossas
mensageiras.
Vinicius nasceu com a célula poética, e esta desabrochou
em cânticos variados, na voz de seus lábios e na dos instrumentos.
Com estes cânticos ele encantou o seu povo.
E era um povo necessitado de canto, um canto tão necessitado mesmo!


Deus - Ele deu alegria ao meu povo?


São Pedro (exultante) - Se deu, Senhor!
E para isso não precisava sempre compor canções alegres.
Ia até o fundo das canções tristes, mas dava-lhes uma tal
doçura e meiguice que as pessoas, ouvindo-as, não sabiam
se choravam ou se viam consoladas velhas mágoas.
Era um coração se desfazendo em música, Senhor.
Deu tanta alegria ao povo, que até a última hora de sua vida
(esta não chegou a ser longa, mas se alongou em canção)
trabalhou com seu fiel parceiro
Toquinho para levar às crianças um tipo musical de felicidade.
Morreu pois a vosso serviço, Senhor.


Deus (disfarçando a emoção) - Mande entrar,
mande entrar logo esse rapaz.
Vinicius entra rodeado de anjos, crianças, virgens
e matronas que entoam mansamente:


Se todos fossem iguais a você,

que maravilha viver!

Uma canção pelo ar,

uma mulher a cantar,

uma cidade a cantar,

a sorrir, a cantar, a pedir

a beleza de amar,

como o sol, como a flor, como a luz,

amar sem mentir nem sofrer.

Existiria a verdade,

verdade que ninguém vê,

se todos fossem no mundo

iguais a você!


De vários pontos, vêm-se aproximando Sinhô,
Pixinguinha, Heitor dos Prazeres, Ciro Monteiro,
Noel Rosa, Dolores Duran, Orfeu, Eurídice,
Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Portinari,
Murilo Mendes, Mayza, Lúcio Rangel, Tia Ciata,
Santa Cecília, Antônio Maria, Bach, Ernesto Nazaré,
Jaime Ovalle, Chiquinha Gonzaga e outros e outros e
outros que não caberiam neste relato mas cabem na
imensidão do céu e som, e unem-se ao coral:


Teu caminho é de paz e de amor.

Abre os teus braços e canta

a última esperança,

a esperança divina

de amar em paz!...
.
.
.
Carlos Drummond de Andrade...

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