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quinta-feira, 19 de julho de 2012

Uma didática da invenção...




I

Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:

a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca

b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer

c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação

e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que

flui entre 2 lagartos

f) Como pegar na voz de um peixe

g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.

etc

etc

etc

Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.


II


Desinventar objetos. O pente, por exemplo.

Dar ao pente funções de não pentear. Até que

ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou

Uma gravanha.

Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.


III


Repetir repetir – até ficar diferente.

Repetir é um dom do estilo.


IV


No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava

escrito:

Poesia é quando a tarde está competente para dálias.

É quando

Ao lado de um pardal o dia dorme antes.

Quando o homem faz sua primeira lagartixa.

É quando um trevo assume a noite

E um sapo engole as auroras.


V


Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.


VI


As coisas que não têm nome são mais pronunciadas

por crianças.


VII


No descomeço era o verbo.

Só depois é que veio o delírio do verbo.

O delírio do verbo estava no começo, lá

onde a criança diz: Eu escuto a voz dos passarinhos.

A criança não sabe que o verbo escutar não

funciona para cor, mas para som.

Então se a criança muda a função de um

verbo, ele delira.

E pois.

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz

de fazer nascimentos –

O verbo tem que pegar delírio.


VIII


Um girassol se apropriou de Deus: foi em

Van Gogh.


IX


Para entrar em estado de árvore é preciso

partir de um torpor animal de lagarto às

3 horas da tarde, no mês de agosto.

Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer

em nossa boca.

Sofreremos alguma decomposição lírica até

o mato sair na voz.

Hoje eu desenho o cheiro das árvores.


X


Não tem altura o silêncio das pedras.


XI


Adoecer de nós a Natureza:

- Botar aflição nas pedras

(Como fez Rodin).


XII


Pegar no espaço contiguidades verbais é o

mesmo que pegar mosca no hospício para dar

banho nelas.

Essa é uma prática sem dor.

É como estar amanhecido a pássaros.

Qualquer defeito vegetal de um pássaro pode

modificar os seus gorjeios.


XIII


As coisas não querem mais ser vistas por

pessoas razoáveis:

Elas desejam ser olhadas de azul –

Que nem uma criança que você olha de ave.


XIV


Poesia é voar fora da asa.


XV


Aos blocos semânticos dar equilíbrio. Onde o

Abstrato entre, amarre com arame. Ao lado de

um primal deixe um termo erudito. Aplique na

aridez intumescências. Encoste um cego ao

sublime. E no solene um pênis sujo.


XVI


Entra um chamejamento de luxúria em mim:

Ela há de se deitar sobre meu corpo em toda

a espessura de sua boca!

Agora estou varado de entremências.

(Sou pervertido pelas castidades? Santificado

pelas imundícias?)

Há certas frases que se iluminam pelo opaco.


XVII


Em casa de caramujo até o sol encarde.


XVIII


As coisas da terra lhe davam gala.

Se batesse um azul no horizonte seu olho

entoasse.

Todos lhe ensinavam para inútil

Aves faziam bosta nos seus cabelos.


XIX


O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa

era a imagem de um vidro mole que fazia uma

volta atrás de casa.

Passou um homem depois e disse: Essa volta

que o rio faz por trás de sua casa se chama

enseada.

Não era mais a imagem de uma cobra de vidro

que fazia uma volta atrás de casa.

Era uma enseada.

Acho que o nome empobreceu a imagem.


XX


Lembro um menino repetindo as tardes naquele

quintal.


XXI


Ocupo muito de mim com o meu desconhecer.

Sou um sujeito letrado em dicionários.

Não tenho que 100 palavras.

Pelo menos uma vez por dia me vou no Morais

ou no Viterbo –

A fim de consertar a minha ignorãça,

mas só acrescenta.

Despesas para minha erudição tiro nos almanaques:

- Ser ou não ser, eis a questão.

Ou na porta dos cemitérios:

- Lembra que és pó e que ao pó tu voltarás.

Ou no verso das folhinhas:

- Conhece-te a ti mesmo.

Ou na boca do povinho:

- Coisa que não acaba no mundo é gente besta

e pau seco.

Etc

Etc

Etc

Maior que o infinito é a encomenda...
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Manoel de Barros...

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