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segunda-feira, 2 de julho de 2012

O amor dos homens...


Na árvore em frente


eu terei mandado instalar um alto-falante com que os passarinhos

amplifiquem seus alegres cantos para o teu lânguido despertar.

Acordarás feliz sob o lençol de linho antigo

com um raio de sol a brincar no talvegue de teus seios

e me darás a boca em flor; minhas mãos amantes

te buscarão longamente e tu virás de longe, amiga

do fundo do teu ser de sono e plumas

para me receber; nossa fruição

será serena e tarda, repousarei em ti

como o homem sobre o seu túmulo, pois nada

haverá fora de nós.

Nosso amor será simples e sem tempo.

Depois saudaremos a claridade.

Tu dirás bom dia ao teto que nos abriga

e ao espelho que recolhe a tua rápida nudez.

Em seguida teremos fome: haverá chá-da-índia

para matar a nossa sede e mel

para adoçar o nosso pão. Satisfeitos, ficaremos

como dois irmãos que se amam além do sangue

e fumaremos juntos o nosso primeiro cigarro matutino.

Só então nos separaremos. Tu me perguntarás

e eu te responderei, a olhar com ternura as minhas pernas

que o amor pacificou, lembrando-me que elas andaram muitas léguas de mulher

até te descobrir. Pensarei que tu és a flor extrema

dessa desesperada minha busca; que em ti

fez-se a unidade. De repente, ficarei triste

e solitário como um homem, vagamente atento

aos ruídos longínquos da cidade, enquanto te atarefas absurda

no teu cotidiano, perdida, ah tão perdida

de mim. Sentirei alguma coisa que se fecha no meu peito

como pesada porta. Terei ciúme

da luz que te configura e de ti mesma

que te deixas viver, quando deveras

seguir comigo como a jovem árvore na corrente de um rio

em demanda do abismo. Vem-me a angústia

do limite que nos antagoniza. Vejo a redoma de ar

que te circunda – o espaço

que separa os nossos tempos. Tua forma

é outra: bela demais, talvez, para poder

ser totalmente minha. Tua respiração

obedece a um ritmo diverso. Tu és mulher.

Tu tens seios, lágrimas e pétalas. À tua volta

o ar se faz aroma. Fora de mim

és pura imagem; em mim

és como um pássaro que eu subjugo, como um pão

que eu mastigo, como uma secreta fonte entreaberta

em que bebo, como um resto de nuvem

sobre que me repouso. Mas nada

consegue arrancar-te à tua obstinação

em ser, fora de mim – e eu sofro, amada

de não me seres mais. Mas tudo é nada.

Olho de súbito tua face, onde há gravada

toda a história da vida, teu corpo

rompendo em flores, teu ventre

fértil. Move-te

uma infinita paciência. Na concha do teu sexo

estou eu, meus poemas, minhas dores

minhas ressurreições. Teus seios

são cântaros de leite com que matas

a fome universal. És mulher

como folha, como flor e como fruto

e eu sou apenas só. Escravizado em ti

despeço-me de mim, sigo caminhando à tua grande

pequenina sombra. Vou ver-te tomar banho

lavar de ti o que restou do nosso amor

enquanto busco em minha mente algo que te dizer

de estupefaciente. Mas tudo é nada.

São teus gestos que falam, a contração

dos lábios de maneira a esticar melhor a pele

para passar o creme, a boca

levemente entreaberta com que mistificar melhor a eterna imagem

no eterno espelho. E então, desesperado

parto de ti, sou caçador de tigres em Bengala

alpinista no Tibet, monje em Cintra, espeleólogo

na Patagônia. Passo três meses

numa jangada em pleno oceano para

provar a origem polinésica dos maias. Alimento-me

de plancto, converso com as gaivotas, deito ao mar poesia engarrafada, acabo

naufragando nas costas de Antofagasta. Time, Life e Paris-Match

dedicam-me enormes reportagens. Fazem-me

o "Homem do Ano" e candidato certo ao Prêmio Nobel.

Mas eis que comes um pêssego. Teu lábio

inferior dobra-se sob a polpa, o suco

escorre pelo teu queixo, cai uma gota no teu seio

E tu te ris. Teu riso

desagrega os átomos. O espelho pulveriza-se, funde-se o cano de descarga

quantidades insuspeitadas de estrôncio-90

acumulam-se nas camadas superiores do banheiro

só os genes de meus tataranetos poderão dar prova cabal de tua imensa

radioatividade. Tu te ris, amiga

e me beijas sabendo a pêssego. E eu te amo

de morrer. Interiormente

procuro afastar meus receios: "Não, ela me ama..."

Digo-me, para me convencer, enquanto sinto

teus seios despontarem em minhas mãos

e se crisparem tuas nádegas. Queres ficar grávida

imediatamente. Há em ti um desejo súbito de alcachofras. Desejarias

fazer o parto-sem-dor à luz da teoria dos reflexos condicionados

de Pavlov. Depois, sorrindo

silencias. Odeio o teu silêncio

que não me pertence, que não é

de ninguém: teu silêncio

povoado de memórias. Esbofeteio-te

e vou correndo cortar o pulso com gilete-azul; meu sangue

flui como um pedido de perdão. Abres tua caixa de costura

e coses com linha amarela o meu pulso abandonado, que é para

combinar bem as cores; em seguida

fazes-me sugar tua carótida, numa longa, lenta

transfusão. Eu convalescente

começas a sair: foste ao cabeleireiro. Perscruto em tua face. Sinto-me

traído, delinqüescente, em ponto de lágrimas. Mas te aproximas

só com o casaco do pijama e pousas

minha mão na tua perna. E então eu canto:

tu és a mulher amada: destrói-me! Tua beleza

corrói minha carne como um ácido! Teu signo

é o da destruição! Nada resta

depois de ti senão ruínas! Tu és o sentimento

de todo o meu inútil, a causa

de minha intolerável permanência! Tu és

uma contrafação da aurora! Amor, amada

abençoada sejas: tu e a tua

impassibilidade. Abençoada sejas

tu que crias a vertigem na calma, a calma

no seio da paixão. Bendita sejas

tu que deixas o homem nu diante de si mesmo, que arrasas

os alicerces do cotidiano. Mágica é tua face

dentro da grande treva da existência. Sim, mágica

é a face da que não quer senão o abismo

do ser amado. Exista ela para desmentir

a falsa mulher, a que se veste de inúteis panos

e inúteis danos. Possa ela, cada dia

renovar o tempo, transformar

uma hora num minuto. Seja ela

a que nega toda a vaidade, a que constrói

todo o silêncio. Caminhe ela

lado a lado do homem em sua antiga, solitária marcha

para o desconhecido – esse eterno par

com que começa e finda o mundo – ela que agora

longe de mim, perto de mim, vivendo

da constante presença da minha saudade

é mais do que nunca a minha amada: a minha amada e a minha amiga

a que me cobre de óleos santos e é portadora dos meus cantos

a minha amiga nunca superável

a minha inseparável inimiga...
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Vinicius de Moraes...

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